“Não ouçam uma despedida”: Catarina Martins sai da liderança com promessa de futuro político e acerto de contas com o PS
NUNO BOTELHO
Último discurso como coordenadora do Bloco sem tom de despedida. Catarina Martins vai manter-se ativa politicamente, mas, elogiando Louçã pela transição anterior, prometeu abrir espaço para Mariana Mortágua. E fechou com ataque cerrado à maioria “cavaquista” que o PS criou e com a qual “não sabe o que fazer”
É o último discurso enquanto coordenadora do Bloco de Esquerda, ao fim de 11 anos na liderança do partido, mas não é o fim. “Não ouçam uma despedida”, pediu Catarina Martins, perante a plateia que a aplaudia. “Termino um mandato, continuo a caminhar aqui. Como sempre.” O novo ciclo no Bloco ainda mal começou e as pistas para o futuro já estão lançadas.
No último discurso como coordenadora do Bloco, Catarina Martins agradeceu o “privilégio” de ter seguido o “caminho destes últimos 11 anos”. “E pelo que mais virá”, atirou com alvo a um futuro político que se sabe existir, mas que ainda não se sabe por onde passará. A bloquista já informou que vai deixar também o lugar de deputada no verão, mas, como o Expresso adiantou, irá substituir Mariana Mortágua, a sua mais provável sucessora, no programa de debate político “Linhas Vermelhas”, ao lado da centrista Cecília Meireles.
A propósito de trocas de liderança, o início do discurso da coordenadora que agora se despede foi feito de elogios, sobretudo aos fundadores, mais ainda ao líder que a antecedeu. Falou em “inteligência”, “combatividade” e “entrega” de Francisco Louçã, mas frisou particularmente o mais importante: “soube estar presente sempre que precisei, mas também dar-me todo o espaço do mundo para que a coordenação do Bloco não fosse uma substituição impossível”. Como que lembrando que, embora se mantenha na direção do partido e ativa politicamente, Catarina Martins vai abrir o espaço para Mariana Mortágua.
Catarina Martins despediu-se da liderança com elogio ao antecessor, Francisco Louçã
NUNO BOTELHO
Além dos elogios a Francisco Louçã, Catarina Martins lembrou como Luís Fazenda e Fernando Rosas “reinventaram” a participação no partido e mostrara que “as gerações não se atropelam nem se substituem, acrescentam-se". Também Miguel Portas foi lembrado como alguém de quem a líder guarda o “conselho certeiro de evitar a todo o custo perder tempo com o desnecessário para não perder de vista o fundamental”. Assim como João Semedo, com quem dividiu a liderança bicéfala do partido. “Portugal deve agradecer-lhe a generosidade com que se dedicou a esta causa como ao SNS até ao último dos seus dias”.
Embora haja uma corrente crítica no partido, longe vão os tempos de guerra aberta entre facções. E também por isso Catarina Martins não esqueceu o em tempos opositor, e hoje líder da bancada parlamentar do Bloco, Pedro Filipe Soares. Pela sua “capacidade de diálogo, pelo rigor na luta, pelas questões fundamentais que definem o nosso programa, pela forma como organiza a nossa voz no Parlamento e pela solidariedade nos dias de trabalho tão longos e duros que partilhamos”. Sobre Mariana Mortágua, a quem deverá passar a pasta, e Marisa Matias, outro dos nomes fortes do partido, a líder lembrou como estiveram sempre “mão na mão” nos “momentos mais difíceis”.
Das conquistas internas à maioria “cavaquista” do PS
O discurso arrancou para dentro, não só em agradecimentos como em reivindicações de conquistas do Bloco na última década. “Revelámos escândalos financeiros, denunciámos a pirataria das privatizações e os banqueiros, travámos despejos”, enumerou. “Perante cada injustiça, transformámos a raiva em luta e em proposta.”
Depois, Catarina Martins virou-se para fora. E para acertar contas com o PS, que fez “chantagem desde que a geringonça acabou em 2019”. É certo que a maioria absoluta que os socialistas ganharam em 2022, que justifica parte do tombo do Bloco, “deixou feridas”. Mas no Bloco, garante, não há arrependimentos: “não nos arrependemos da coerência”. Aliás, é essa coerência, disse, que permitiu que o Bloco continuasse a bater-se por temas como a “saúde” ou os “direitos laborais”.
Num ataque cerrado à governação socialista, Catarina Martins acusou o PS de “arrogância”, de se perder em “guerras internas” e protagonizar um Governo “paralisado e enredado nos seus próprios erros”. No fundo, “tudo o que se podia esperar de uma maioria absoluta.” E Catarina Martins lembrou outras. “O PS, com maioria absoluta, achou que chegara o seu momento cavaquista.” Mas agora “uma boa parte da população está farta” e o Governo “não sabe o que fazer com a sua vitória”.
O novo ciclo político no Bloco de Esquerda abre-se a partir deste fim de semana, quando Mariana Mortágua for, enfim, entronizada. E nas estruturas bloquistas passa-se o discurso de que o partido já cresce. “É na nossa coerência que se alicerça o crescimento que já sentimos na rua e que até as sondagens já reconhecem”, disse a ainda coordenadora.
Um dos desafios para o pós-Catarina passa por impedir que o voto útil, que é o voto anti-Chega, caia novamente para o PS. E esse foi facto também lembrado na última intervenção de Catarina Martins. O PS “hoje encena confrontos vazios com a direita, enquanto lhe copia as políticas”, seja na habitação, nos serviços públicos, no trabalho. “Gritam contra a extrema-direita? Sem dúvida. Mas privam o povo de um projeto de democracia e Estado Social em que se possa acreditar.”
Pior do que isso, o PS “está a contaminar todo o debate democrático e a estender a passadeira ao regresso dos piores fantasmas do passado”. Porque, insistia Catarina Martins, a sombra do Chega é perigosa - “divide o povo e alimenta o ódio quem quer convencer o pobre que a culpa da sua situação é do mais miserável, ou do imigrante, ou da mulher” -, mas o PS está a criar uma nova sombra, “porque alimenta as ervas daninhas do ressentimento quem proclama vitórias enquanto o povo sente a vida a andar para trás”.
Embora tenha avisado que não é uma despedida total, discurso de Catarina foi emocionado
NUNO BOTELHO
Com versos da “poesia poderosa” de Alice Neto de Sousa Catarina Martins finalizou o último discurso enquanto coordenadora depois de uma década de liderança. As últimas palavras, já emocionadas, são de agradecimento pelos “anos extraordinários” , “apoio” ,“crítica”, “imaginação”, “determinação”, “abraço” e “força”. “E, sobretudo, obrigada pelo tempo que vamos começar, como sempre, lado a lado”, termina ao som de um forte e longo aplauso. Com um pavilhão com mais de 600 pessoas, Catarina Martins despede-se da liderança com uma ovação de pé dos “camaradas” e uma promessa de que se manterá por perto.
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