O que é uma comissão parlamentar de inquérito? E esta sobre a TAP, serve para quê?
Tiago Miranda
Banco de Portugal, Defesa ou TAP são só alguns dos temas que já deram origem a comissões parlamentares de inquérito. Mas para que serve? E que consequências pode ter? Os deputados (ou ex) Luís Leite Ramos, Mariana Mortágua e Cecília Meireles ajudam a responder às perguntas
As comissões parlamentares de inquérito (CPI) são pedidas recorrentemente pelos partidos (com assento na Assembleia da Republica) para obterem esclarecimentos sobre polémicas, sejam elas dentro ou fora do Governo. Já foram muitos os políticos, administradores de instituições financeiras ou entidades públicas e até diretores desportivos que se sentaram nas pequenas salas da Assembleia da República e responderam aos deputados. Os resultados podem ser mais ou menos visíveis. A próxima CPI será sobre a gestão política da TAP, uma proposta do Bloco de Esquerda que o PS já confirmou que irá viabilizar, que foi discutida no Parlamento esta quarta-feira e será votada na sexta. Depois, é necessário que cada partido indique os deputados para a comissão que terá de tomar posse antes de iniciar os seus trabalhos.
A proposta do Bloco de Esquerda pretende, a partir do caso Alexandra Reis, averiguar as "decisões de gestão da TAP, SGPS e TAP, S.A. que possam ter lesado os interesses da companhia e, logo, o interesse público" e também “as responsabilidades da tutela, quer do Ministério das Finanças quer do Ministério das Infraestruturas, nas decisões tomadas na TAP, SGPS e na TAP, S.A.”. Ou seja, avaliar a administração da TAP, mas também Pedro Nuno Santos, João Leão e Fernando Medina e, no limite, a ação dos Governos de Costa na transportadora aérea.
Mas afinal, o que uma CPI? E para que serve? O seu trabalho dá frutos? Luís Leite Ramos, ex-deputado do PSD que presidiu a CPI à gestão da Caixa Geral de Depósitos, em 2019; Mariana Mortágua, deputada do BE que já fez parte de cinco CPI; e Cecília Meireles, ex-deputada do CDS que marcou presença em sete destas comissões ajudam a responder a estas perguntas. Enquanto há quem defenda que a CPI tem resultados “em si mesma” – pela revelação de factos e exposição de comportamentos –, há também quem peça por “continuidade” à justiça e reconheça “frustração” na falta de consequências. Mas vamos lá explicar isto tudo.
O que é uma comissão parlamentar de inquérito (CPI)?
É um mecanismo democrático que tem como função “vigiar o cumprimento da Constituição e das leis” e “apreciar os atos do Governo e da Administração”, como diz o artigo 1.º do Regime Jurídico dos Inquéritos Parlamentares. Em termos práticos, trata-se de um inquérito conduzido por um conjunto de deputados de cada grupo parlamentar para o apuramento de factos sobre um determinado assunto. “[As CPI] fazem parte da função essencial do Parlamento que é o escrutínio do governo e das instâncias da administração pública”, diz ao Expresso Luís Leite Ramos, ex-deputado do PSD que presidiu a CPI à gestão da Caixa Geral de Depósitos, em 2019, que expôs os negócios de Joe Berardo, por exemplo. As audições são gravadas – salvo se, por “motivo fundado”, a comissão “deliberar noutro sentido” – e passadas a ata. As audições são, geralmente, públicas, mas a pedido de algum partido ou de alguma das pessoas ou entidades ouvidas podem ser feitas à porta fechada.
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Quem pode convocar uma CPI? E sobre que tipo de assuntos?
Para existir uma CPI, basta a Assembleia da República aprovar por maioria simples (metade dos deputados mais um) a proposta apresentada por um partido. Também pode ser imposta por direito potestativo (direito a impor uma agenda) por “um quinto dos deputados em efetividade de funções” e “até ao limite de um por deputado e por sessão legislativa".
O requerimento a pedir a comissão deve ser dirigido ao Presidente da Assembleia da República, com os “objetivos e fundamentos” do pedido. Caso os autores da CPI prefiram, este documento pode incluir ainda a lista das pessoas a “convocar” e a documentação a consultar. Qualquer “matéria de interesse público” relevante para o “exercício das atribuições” da Assembleia da República pode ser alvo de uma CPI.
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Para que servem as CPI?
“As CPI visam acima de tudo escrutínio público”, defende Mariana Mortágua, deputada do Bloco de Esquerda que já participou em cinco destes mecanismos, grande parte relacionada com instituições bancárias – Banif, BES, Novo Banco, CGD e “swaps”. Através das CPI, os deputados têm acesso a “informações e documentos que julguem úteis à realização do inquérito”, diz o regime jurídico, incluindo aqueles “classificados como confidenciais ou sigilosos”, garantindo que se mantêm fora do conhecimento público.
Este acesso, que dificilmente seria conseguido de outra maneira, pode ser decisivo para descobrir possíveis ilegalidades. “[As CPI] dão poderes de acesso a informação e documentos que permitem uma fiscalização minuciosa de eventos”, começa por explicar Mariana Mortágua. Também Cecília Meireles, ex-deputada do CDS e uma das históricas presenças em CPI, concorda que estes mecanismos permitem “descobrir coisas que de outra forma não teriam sido descobertas e aumentar a compreensão das pessoas sobre alguns assuntos”. Utilizando o exemplo do setor da banca, Mortágua lembra algumas das vantagens deste mecanismo. “Não saberíamos o que aconteceu na banca portuguesa se não fosse pela CPI. Transformou-se uma questão técnica num escrutínio público sobre a distribuição de poderes e privilégios”. E sublinha: “é o escrutino do Parlamento na sua forma mais pura”.
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Que resultados práticos são retirados?
Mesmo as CPI mais mediáticas, como a da gestão da Caixa Geral de Depósitos ou da TAP, podem não produzir resultados imediatos ou as consequências exigidas pela opinião pública. “Há a ideia errada de que as CPI vão encontrar os culpados e os vão prender, isso frusta as expetativas das pessoas. Estas comissões servem para escrutinar e não para aplicar a justiça”, explica Luís Leite Ramos. Também Mariana Mortágua vê as CPI como “um resultado em si mesmo”. Para a bloquista, a função de uma CPI é “descobrir o que se passou e explicar aos portugueses”, independentemente da continuidade que for dada por entidades exteriores como a Procuradoria Geral da República (PGR) ou o Ministério Público (MP). “As CPI têm de fazer seu papel – que passa pelo escrutínio público – independentemente do que o MP vier fazer a seguir”. Tanto no caso dos BES como na gestão da CGD, Mortágua lembra a influência que as CPI tiveram no desenvolvimento dos acontecimentos: “Hoje as pessoas sabem dos lesados do BES graças à CPI. O Joe Berardo não está à frente da coleção Berardo porque a CPI expôs os seus esquemas. Não é um pequeno ganho.”
Ainda assim, Mortágua entende que a atitude de alguns inquiridos “crie frustração” às pessoas. “Quem [durante uma CPI] diz que não sabe ou não se lembra também permite às pessoas tirarem conclusões. É verdade que essa estratégia serve de entrave [aos deputados], mas não impede a comissão de tirar conclusões.”
Por outro lado, o ex-deputado do PSD admite ter sofrido de “frustração” depois de terminados os trabalhos da CPI que presidiu em 2019. “Quando a CPI terminou, entreguei ao MP documentos com bases de dados muito relevantes, matéria que merecia uma investigação aprofundada. Quatro anos depois, este trabalho não foi dignificado nem valorizado”, partilha o social democrata, professor na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Pelo menos nesta CPI à gestão da Caixa Geral de Depósitos, diz Luís Leite Ramos, teria sido benéfico uma “maior ligação entre a CPI e a justiça”. “Havia todas as vantagens de que a documentação tivesse servido a justiça”.
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Quais são as maiores dificuldades?
Para existir “escrutínio do Governo e das instâncias da administração publica” durante as CPI, diz Luís Leite Ramos, é preciso que estas reúnam certas “condições”. “Tem de haver por parte dos partidos uma vontade genuína de cumprir objetivos. Os grupos parlamentares não podem tentar usar as CPI para minimizar danos ou justificar os seus próprios erros”, avisa. A deputada do BE concorda: “[As CPI] serão tanto mais produtivas quanto não forem utilizadas como armas de arremesso político.”
Apesar de reconhecer que as “convicções” de cada partido têm influência na forma como conduzem as CPI, Mortágua alerta para as consequências dos intervenientes passarem a discussão para o plano político.“Quando [as CPI] deixam de ser dominadas pela vontade de descobrir o que passou e passam a ser uma disputa sobre quem controla a narrativa, deixa de ser uma CPI e passa a ser uma discussão a ter num plenário". As funções das CPI são claras, para a deputado do BE: “Uma CPI existe para saber se há ilegalidades, abusos de poder, fraudes, favorecimentos. Serve para avaliar factos e não para ter uma avaliação política sobre eles, para isso existem outros fóruns.”
Depois, há outras dificuldades que passam pelo “acesso à informação” ou pela “experiência” dos deputados escolhidos para integrar a CPI. “Por vezes recebemos caixotes de documentação, que torna difícil perceber o que é mais relevante, e outras vezes não recebemos informação suficiente”, partilha Cecília Meireles. É aqui que entra o peso da experiência que "é muito relevante para saber que documentos pedir, para as perguntas serem bem feitas, para saber quando é que o entrevistado está a tentar fugir à questão ou quando apresenta dados novos”. Para uma CPI conseguir bons resultados, Luís Leite Ramos concorda que os partidos e os deputados “têm de fazer o trabalho de casa”. “É um trabalho muito exigente e tem de haver assessores e gente competente”, conclui o social democrata.
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E se os convocados faltarem ou mentirem?
O regime jurídico que abrange as CPI é sério e taxativo. A “falta de comparência, a recusa de depoimento ou o não cumprimento de ordens legítimas”, lê-se no artigo 19 do Regime Jurídico dos Inquéritos Parlamentares, constituem “crime de desobediência qualificada, para os efeitos previstos no Código Penal”. Ou seja, mentir durante as declarações numa CPI é equiparado a mentir em tribunais, por exemplo. A falta de comparência ou a recusa de depoimento só pode justificada “nos termos gerais da lei processual penal”, sendo que a “obrigação de comparecer” tem prioridade sobre “qualquer ato ou diligência oficial”, diz o artigo 17.
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Já agora, esta CPI sobre a TAP tem que objetivo?
Esta comissão nasceu da polémica sobre a indemnização a Alexandra Reis, uma ex-administradora da TAP que recebeu uma indemnização de 500 mil euros em fevereiro de 2022, quando saiu da empresa (e que pouco depois foi nomeada, primeiro para a administração da NAV, outra empresa pública, e depois para secretária de Estado do Tesouro). A polémica acabou por provocar a sua demissão do Governo, mas sobretudo abriu uma discussão sobre a gestão da TAP, que atualmente é uma empresa pública (ou seja, é detida pelo Estado).
A proposta de Comissão Parlamentar de Inquérito apresentada pretende, assim, “avaliar o exercício da tutela política da gestão da TAP, SGPS, S.A. e da TAP, S.A., em particular no período entre 2020 e 2022, sob controlo público”, nomeadamente:
O processo de nomeação ou contratação de Alexandra Reis para a administração da TAP, assim como dos restantes administradores (para além da sua adequação às leis em vigor);
O processo e a natureza da nomeação de Alexandra Reis para o Conselho de Administração da NAV e a eventual ligação ao processo de saída do Conselho de Administração da TAP (ou seja, se lhe foi prometido outro cargo aquando da rescisão);
O processo de desvinculação de membros de órgãos sociais da TAP e a adequação legal dos pagamentos indemnizatórios;
Os salários pagos aos membros dos órgãos sociais da TAP, nas suas várias componentes;
A qualidade da informação prestada ao acionista e o envolvimento dos decisores públicos nas várias decisões tomadas sobre a empresa;
As decisões de gestão da TAP “que possam ter lesado os interesses da companhia e, logo, o interesse público”;
As responsabilidades da tutela, quer do Ministério das Finanças (Fernando Medina e, antes, João Leão) quer do Ministério das Infraestruturas (Pedro Nuno Santos, que entretanto já saiu do Governo), nas decisões tomadas na TAP.
Na apresentação da proposta, esta quarta-feira no Parlamento, a deputada do BE Mariana Mortágua defendeu que "a comissão de inquérito proposta pelo Bloco de Esquerda tem objetivos simples: romper com o vício da negação e do esquecimento, trazer transparência à gestão da TAP, apurar responsabilidades e reverter decisões que ofendem os trabalhadores e que lesam o interesse público", explicou, justificando, já no final do debate, que uma "comissão de inquérito que é sobre tudo não investiga nada" (para responder aos partidos da oposição que pediam um escrutínio mais alargado) e que espera que os trabalhos "não sejam contaminados por jogos políticos vazios".
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