De entre todas as medidas anunciadas pelo primeiro-ministro, uma destaca-se como ex-líbris de uma certa forma de governar: a “meia pensão” extra para os pensionistas, a pagar em outubro, com a contrapartida da redução da atualização das pensões a partir de janeiro, que terá repercussão perpétua no seu valor.
Costa fez do anúncio um exercício de habilidade. Apresentou como um apoio (“mais 50% de pensão em outubro”) o que não é mais que uma antecipação agora (porventura parcial, os dados de novembro da inflação o dirão) e um corte de pensão depois, cujo único objetivo é assegurar poupança no Orçamento de 2023, à custa da diminuição dos rendimentos reais dos pensionistas. A medida significa que o Governo incumprirá a lei e a garantia dada no Parlamento em maio, quando o secretário de Estado da Segurança Social anunciou que haveria atualização regular das pensões com base na lei em vigor, compensando em 2023 os efeitos da inflação de 2022.
Já muita gente desconstruiu a medida, mas é bom insistir. A lei de atualização das pensões, feita por Vieira da Silva em 2006, tem uma determinada lógica. As pensões são, por regra, atualizadas em função da inflação, embora a fórmula dependa também do crescimento: quando o PIB cresce menos, as pensões mais baixas estão protegidas, mas as mais altas perdem poder de compra (entre 0,5% e 0,75%); quando o PIB cresce mais de 3% (como é o caso este ano), todas as pensões têm atualização pela inflação e as mais baixas somam a esse valor uma proporção do crescimento, ganhando poder de compra em termos reais. Ora, é precisamente isto que o Governo quis impedir, decretando uma atualização abaixo da inflação - também a troika suspendeu a aplicação desta lei nos anos da austeridade. Como o valor cortado em 2023 nunca será reposto, a partir de 2024 ele passa a estar inscrito para sempre nas pensões. Que Eurico Brilhante Dias tenha tido a desfaçatez de repetir várias vezes na televisão que se trata “do maior aumento de pensões das últimas décadas” mostra como os porta-vozes oficiais do Partido Socialista não têm pejo em brincar com as palavras e em fazer delas mero jogo (como o demagogo que despertava a “fúria e raiva” de Sophia), insultando a inteligência de todos.
Quanto às restantes medidas, talvez se possa resumi-las assim. Na energia, ficam a menos de meio, porque o IVA só baixa para uma parte da fatura elétrica – continuamos muito longe da vizinha Espanha, que aliás também reduziu o IVA do gás. Nos salários, zero: mantém-se a falácia do perigo da “espiral inflacionista” para impor uma perda real de rendimento a quem trabalha (que os 125 euros de apoio único estão muito longe de compensar), um “perigo inflacionista” que caduca, todavia, quando se trata de atacar a verdadeira origem dessa espiral - a especulação no preço da energia, dos combustíveis e dos bens alimentares. Nos dividendos, não se toca; não há fixação de preços de bens essenciais para impedir a especulação que alimenta a inflação e nem sequer se taxam os lucros extraordinários das petrolíferas ou da banca, como vários países já fizeram ou anunciaram que vão fazer. Nos transportes públicos, não haverá aumentos, mas também não haverá redução nem nenhum incentivo à sua utilização, desaproveitando o momento para mudar hábitos e investir na transição climática. Nas rendas, anuncia-se um limite de 2% de aumento (menos mau), mas logo se aproveita para decretar que esse será o valor considerado para a inflação “prevista” em 2023 (funcionando como referência para as prestações sociais), ou seja, utiliza-se a medida como boleia para anunciar um mais que provável novo encolhimento real dos rendimentos no futuro.
Tudo somado, o pacote do governo aposta na contração estrutural de salários, pensões e outras prestações sociais, agravando as dificuldades da maioria e aumentando a desigualdade entre capital e trabalho. Não combate a raiz da inflação, recusando-se a tocar nos privilégios de quem especula. E é guiado por um objetivo central, assumido por António Costa na conferência de imprensa: continuar a diminuir o défice. Não admira que Marcelo, o presidente eleito com o apoio arrebatado de Costa e de Santos Silva, aplauda o pacote e diga que “o PSD ajudou imenso” e que há entre estas medidas e a política da direita um “consenso implícito”. Ele sabe do que fala.
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