Política

Ventura e outros dois dirigentes do Chega acusados do crime de desobediência por jantar-comício nas presidenciais

Ventura e outros dois dirigentes do Chega acusados do crime de desobediência por jantar-comício nas presidenciais
José Fernandes

O evento em causa decorreu em estado de emergência e ao arrepio de um parecer da DGS, concentrando cerca de 170 apoiantes em 450 metros quadrados num salão sem ventilação nem distanciamento físico. O presidente do Chega fica sujeito a termo de identidade e residência, tendo já garantido que utilizará “todos os instrumentos legais” para provar a sua inocência

O Ministério Público acusou André Ventura do crime de desobediência simples pela organização de um jantar-comício durante a campanha presidencial do candidato apoiado pelo Chega. O evento em causa decorreu em estado de emergência e ao arrepio de um parecer da Direção-Geral da Saúde (DGS). O jantar-comício, realizado a 17 de janeiro nos arredores de Braga, concentrou cerca de 170 apoiantes em 450 metros quadrados num salão sem ventilação nem distanciamento físico.

O presidente do Chega fica sujeito à medida de coação de termo de identidade e residência, de acordo com o inquérito da Procuradoria da República da Comarca de Braga, datado de 28 de julho, a que o Expresso teve acesso. Além de Ventura, as acusações recaem sobre mais dois dirigentes do partido: Rui Paulo Sousa, mandatário nacional da candidatura às presidenciais, e Filipe Melo, presidente da distrital de Braga, que “exerceu, de facto, as funções de mandatário do candidato”. Secundino Azevedo e Teresa Azevedo, donos e gerentes do restaurante Solar do Paço, no lugar de Tebosa, nos arredores de Braga, onde se realizou o evento, também foram acusados.

“António Costa não ficará a rir-se nem ficará sossegado”

Em mensagem de vídeo enviada à imprensa, Ventura garante: “Usaremos todos os instrumentos legais para demonstrar a nossa inocência e a nossa boa-fé neste processo e não deixaremos ao mesmo tempo de fazer a oposição”. “Estranhamos esta acusação, sobretudo depois de termos dado todos os elementos ao Ministério Público que mostrassem, não só a natureza do evento político evidente que se tratava de um ato de campanha, como os contornos da sua realização”, acrescenta.

Dizendo não compreender a acusação, o líder do Chega refere que “às vezes, parece verdadeiramente uma perseguição política que é levada a cabo”. “O Chega e eu próprio não deixaremos de fazer atos políticos. Por muito que o Governo de António Costa queira que a pandemia nos obrigue todos a calar e a deixar de fazer eventos políticos, continuaremos a fazê-los”, sublinha. Para Ventura este é um dia que “não dignifica a prestação da justiça”. E conclui: “Sempre procurámos cumprir regras, mas o Estado de direito não acaba, a política não acaba e António Costa não ficará a rir-se nem ficará sossegado enquanto continuar este modelo de governação em Portugal”.

O inquérito estabelece que os arguidos “agiram de comum acordo, dando curso a um plano que previamente traçaram entre si” e todos sabiam que, “ao agirem desta forma, violavam a proibição de encerramento dos restaurantes em vigor”. “Estavam também cientes que tal proibição fazia parte do regime legal de execução do estado de emergência decretado e renovado pelo Presidente da República e das razões em que o mesmo se fundava. Decidiram levar a cabo tal conduta, mesmo sabendo ser a mesma proibida pela lei penal”, lê-se ainda no inquérito.

Segundo o Ministério Público, os arguidos constituíram-se “coautores materiais de um crime de desobediência simples”, ficando a aguardar “os demais trâmites do processo mediante os termos de identidade e residência”. O crime de desobediência, invocado pelo Ministério Público, é punível com um ano de prisão ou 120 dias de multa.

Ministério Público determina que se proceda “desde já às notificações” dos arguidos

De acordo com o texto, “os eventos da campanha eleitoral foram definidos pelo arguido André Ventura, em estreita coordenação com o seu mandatário nacional e com os ‘mandatários’ distritais", tendo sido feito um contacto com os donos do restaurante que “aceitaram a proposta que lhes foi efetuada e serviram o jantar a um número indeterminado de pessoas que ali compareceram, porém sempre superior a uma centena, e pelo qual cobraram a quantia de 2.400 euros”.

Quatro dias antes da realização do jantar, foi publicado o decreto presidencial que renovava a declaração do estado de emergência para o período entre as 00:00 horas do dia 16 de janeiro até às 23:59 do dia 30. No dia 14, o Governo publicou o decreto que regulamentava a modificação e prorrogação do estado de emergência, recorda ainda o Ministério Público.

“Entre muitas outras medidas, ali se estabelecia um dever geral de recolhimento domiciliário, excecionando-se desse dever a participação, em qualquer qualidade, no âmbito da campanha eleitoral ou da eleição do Presidente da República, nos termos do Decreto-Lei nº 319-A/76, de 3 de maio, na sua redação atual, designadamente para efeitos do exercício do direito de voto”, lê-se. Do mesmo decreto constava uma norma que “permitia aos restaurantes e estabelecimentos similares” funcionarem exclusivamente para efeitos de “confeção destinada a consumo fora do estabelecimento”, através da entrega ao domicílio ou venda ao postigo, tendo sido determinado o encerramento de todos os “restaurantes e similares, cafetarias, casas de chá e afins”.

“Ficou ainda proibida a realização de eventos públicos, com exceção de eventos no âmbito da campanha eleitoral e da eleição do Presidente da República, que então decorria”, sustenta o Ministério Público, ressalvando que “apenas seriam admissíveis eventos de campanha eleitoral em espaços fechados, quando os mesmos decorressem em auditórios, pavilhões de congressos, salas polivalentes, salas de conferências e pavilhões multiusos”, o que não foi o caso deste jantar-comício.

Neste contexto, o Ministério Público conclui que Ventura tinha acesso ao conteúdo desta legislação “desde logo em virtude das funções que exerce como deputado na Assembleia da República”, mas também porque a mesma foi largamente divulgada nos meios de comunicação social, sendo que este último argumento se aplica também aos restantes arguidos. Ainda assim, os arguidos “decidiram avançar com a realização do referido jantar-comício” e os donos do restaurante “decidiram servir o jantar, disponibilizando as instalações do seu restaurante, que franquearam aos convivas e organizadores, bem como confecionando a refeição contratada e fazendo-a servir, através dos seus funcionários”.

O Ministério Público determina igualmente que, apesar de estar a decorrer o período de férias judiciais e o processo não ter natureza urgente, se proceda “desde já às notificações” dos arguidos, “para evitar que as mesmas, e a consequente repercussão pública que possam ter, venham a ficar ‘coladas’ ao período de campanha eleitoral para as autarquias locais”.

“Ficou claro que não há responsabilidade penal evidente e a justiça reconhecerá isso”

Depois de ver levantada a sua imunidade parlamentar para ser constituído arguido, Ventura compareceu a 12 de julho no Campus de Justiça, em Lisboa, para ser interrogado. O interrogatório decorreu por videoconferência e foi realizado pelo serviço do Ministério Público da Comarca de Braga.

À saída, Ventura disse ao Expresso acreditar que “este processo era desnecessário”, tendo-se deslocado para “prestar os esclarecimentos que eram fundamentais”. “Os dados que o procurador questionou foram esclarecidos, o ritmo que a campanha tinha, a forma como foi idealizada e organizada. Penso que ficou claro que não há aqui responsabilidade penal evidente e que o próprio decreto presidencial excecionava os atos de campanha eleitoral”, disse. E acrescentou: “Penso que a justiça reconhecerá isso.”

Segundo o ofício do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, a juíza de instrução criminal pediu ao presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, a constituição de Ventura como arguido para posterior interrogatório. Em junho, o plenário aprovou por unanimidade o parecer da Comissão de Transparência e Estatuto dos Deputados para o levantamento da imunidade parlamentar do deputado único do Chega.

Enquanto decorria o jantar-comício, a candidatura de Ventura assegurou que o jantar cumpria as regras da DGS, mas as autoridades sanitárias revelaram posteriormente que o parecer dado tinha sido negativo. A garantia de que o jantar decorria em conformidade com as regras da DGS foi dada por Rui Paulo Sousa, diretor da campanha presidencial de Ventura, membro da direção nacional do Chega, coordenador da Comissão de Ética do partido e agora candidato autárquico à Câmara de Castelo Branco.

Questionado pelo Expresso sobre este desencontro de versões, Ventura disse, à saída do interrogatório, não ter tido acesso ao parecer. “O que me foi dito, já a posteriori, foi que a DGS não proibiu aquele evento. A DGS disse que não devia realizar-se por ser um restaurante. E isso não estava excecionado no regime de estado de emergência”, declarou, já depois de ter tido meio ano para se inteirar do parecer. “Não se tratava de um parecer a olhar para o detalhe da organização, tratava-se de uma coisa genérica”, distinguiu.

Mais: “Se fosse vontade do legislador impedir eventos políticos em restaurantes, especificamente, o legislador teria de ter excecionado. E isso não ocorreu.” De resto, notou ainda Ventura, “também estavam proibidas ações em equipamentos culturais e houve campanhas que as fizeram”.

Quando o pedido de levantamento da imunidade parlamentar foi conhecido, em maio, Ventura considerou-o “um pouco estranho”. Em nota enviada ao Expresso, o presidente do Chega justificava então a sua estranheza relativamente ao pedido do Ministério Público: “É sabido de todos que não é o candidato presidencial o responsável pela organização, logística e autorizações do evento”. “É, por isso, um pouco estranho que o tribunal, sem o ouvir, decida pedir o levantamento da imunidade”, concluía a nota.

Notícia atualizada às 19h06 com reação de André Ventura.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: HFranco@expresso.impresa.pt

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