Política

António Arnaut (1936-2018): O último projeto do “pai” do SNS

João Semedo e António Arnaut
João Semedo e António Arnaut
Rui Duarte Silva

O “pai do SNS, António Arnaut, e o bloquista João Semedo propuseram no final do ano passado uma nova lei de bases da Saúde. No dia da sua morte, republicamos a entrevista que concedeu ao Expresso em setembro de 2017

O fundador do Serviço Nacional de Saúde (SNS) acredita que chegou o momento de voltar à matriz inicial. O Estado deve garantir gratuitamente os cuidados médicos sem exigir taxas ou outros copagamentos que criem dificuldades no acesso às unidades. O histórico socialista afirma que tem o apoio político necessário para concretizar os planos de reformulação da rede assistencial pública, que aos poucos deve afastar a intervenção dos grupos privados que "mercantilizam a Saúde".

Há dinheiro para a reforma que propõem, com as atuais limitações orçamentais e com as que se preveem?
O financiamento do SNS, estando no vértice da sua sustentabilidade, não é o elemento decisivo. A experiência e a história recente da democracia portuguesa mostram que quando é necessário o dinheiro aparece. Aparece o dinheiro para pagar aos abutres da alta finança e quando se fala na saúde, na dignidade e na vida das pessoas, um Governo decente não pode recusar o essencial para garantir um bem tão fundamental como a proteção da saúde, um dos primeiros deveres de um Estado social. Mas a estabilidade do SNS reside mais nas carreiras, a longa distância, do que no orçamento e não pode continuar a depender dos contratos a prazo, da porta giratória entre o público e o privado. O profissional tem de sentir que está a prestar um serviço de grande relevância social.

Defendem a extinção das parcerias público-privadas ou a reformulação do modelo?
Algumas estão a ter bons resultados mas o Estado deve assumir gradualmente o seu papel como prestador e financiador, sem prejuízo do papel importante da medicina privada, que não são só os grandes grupos de medicina mercantilizada, e da liberdade da procura para quem a pode pagar. Nunca fui contra o privado mas o Estado social não pode renunciar à garantia efetiva dos direitos sociais, sem exclusivos de esquerda ou de direita. Todos são chamados a este imperativo social de garantirmos um SNS digno, para que a população tenha no momento oportuno os cuidados que precisa.

Pedem o fim das taxas moderadoras, independentemente dos rendimentos?
A cobrança de taxas moderadoras não é relevante e cria muitas dificuldades, até é um contrassenso. As taxas moderadoras visam, por definição, moderar a procura desnecessária mas muitas vezes o doente não sabe se é ou não necessário ir ao médico. Quando a pessoa vai à Urgência e precisa não pode ser tributada por isso, e pagar 18 euros é uma dificuldade. Não pode haver entraves à procura de cuidados de saúde.

Que garantia de suporte político teve do PS para que esta proposta fizesse o seu caminho legislativo? Ou seja, para ser apresentada no Parlamento durante a presente legislatura?
Desde a primeira hora em que este Governo tomou posse que achei que o momento era o propício. Temos uma maioria parlamentar de esquerda, um Governo virado para as pessoas e até temos, segundo dizem, um grande consenso social em torno do SNS. Falei desde o princípio com o primeiro-ministro e com o ministro da Saúde e viram sempre com simpatia o meu propósito.

A nossa proposta é feita sobre a lei, não é uma rutura completa. É uma adaptação que faz regressar o SNS à matriz original, respeitando as exigências atuais.

Há 15 dias falei novamente com António Costa e disse-me que, no essencial, o Governo está de acordo com a proposta e considera o nosso trabalho meritório. Tenho uma grande confiança no Governo, nos partidos de esquerda que apoiam o Governo e nos cidadãos do PSD e do CDS que defendem o SNS.

Como o pai do SNS queria mudar a Saúde dos portugueses

O pai do Serviço Nacional de Saúde (SNS) aliou-se ao médico e ex-coordenador do Bloco de Esquerda (BE) para elaborarem uma nova lei de bases da prestação de cuidados aos portugueses.

Na prática, é um 'xeque-mate' aos partidos da maioria parlamentar para que o Parlamento consagre o regresso do SNS à sua "matriz original".

António Arnaut e João Semedo querem o fim das parcerias com os grupos privados, a extinção das taxas moderadoras, a valorização das carreiras e o reforço do papel do Estado. Estão convictos de que vão ter o apoio dos seus partidos de origem e que este é o momento político para provocar a mudança.

Reformados da política, aparentemente, preparam-se para publicar a proposta em livro, a lançar no final de outubro, passadas as eleições autárquicas e aprovado o Orçamento do Estado. O momento político não foi escolhido ao acaso: Arnaut e Semedo sabem que os próximos tempos são de disputa entre os partidos da esquerda mas não querem desperdiçar a oportunidade política aberta com a nova aliança partidária que levou o PS ao poder.

A crença de que a sua proposta para uma nova lei de bases da Saúde não ficará na gaveta assenta na relação próxima que tanto Arnaut como Semedo mantêm com as direções partidárias.

"Falei com o ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, e com o próprio primeiro-ministro, António Costa, que me mostraram a melhor simpatia pela ideia, estranhando todos que o PS não tenha revogado a lei quando teve maioria absoluta", escreve António Arnaut no prefácio do livro, a que o Expresso teve acesso em primeira mão.

"Os partidos em que cada um dos autores milita conhecem as nossas motivações ao avançar com esta proposta, que deixa agora de nos pertencer", prossegue João Semedo, no seu texto de suporte ao mesmo livro. E até chamam o chefe do Estado, Marcelo Rebelo de Sousa, a esta causa: "A ideia de um pacto para a política de Saúde é antiga e já foi preconizada pelo Presidente", lembra António Arnaut.

Agora ou nunca

A concretizar-se a reforma da Saúde, os cuidados assistenciais voltarão a ser da exclusiva responsabilidade do Estado e por ele totalmente suportados.

Aos poucos, os privados, e até mesmo as Misericórdias, deverão abandonar os hospitais públicos e unidades convencionadas que agora gerem. A prestação de serviços à população terá de ser assegurada por profissionais do Estado com carreiras estáveis e sem "portas giratórias" entre os sectores público e privado. Quer isto dizer que, "a administração, gestão e financiamento" de qualquer serviço de saúde "é exclusivamente pública, não podendo sob qualquer forma ser entregue a entidades privadas ou sociais, com ou sem fins lucrativos". « É o fim das parcerias público-privadas (PPP) e dos acordos com as instituições de solidariedade social. À iniciativa privada ficará reservado o papel de "complementar" a oferta do SNS, "não podendo concorrer nem conflituar com os prestadores públicos".

Os autores sustentam que esta proposta tem viabilidade financeira porque o afastamento dos grupos económicos da Saúde vai devolver aos cofres públicos o dinheiro até agora entregue à iniciativa privada.

As contas estão feitas. "Em 2016, o SNS pagou ao imenso e variado mundo dos seus fornecedores e prestadores privados mais de cinco mil milhões de euros", escrevem Arnaut e Semedo. Num orçamento global de nove mil milhões de euros, o retorno é significativo.

Havendo dinheiro, vão existir também todas as razões para devolver aos portugueses um SNS livre de taxas moderadoras. A Constituição diz que a Saúde é gratuita, logo o copagamento só poderá ser exigido "nas prestações de saúde que não tenham sido prescritas por médico ou outro profissional de saúde competente para o efeito". E mesmo assim, nestes casos continuará a existir isenção para "os grupos populacionais sujeitos a maiores riscos e os financeiramente mais desfavorecidos", diz a proposta.

Arnaut e Semedo afirmam que "a crise do SNS é profunda", admitem que "não há soluções simples para problemas complexos" e apontam o dedo aos "muitos erros políticos cometidos" desde 1979, quando foi aprovada a lei de bases que agora querem mudar. Uma mudança que não é uma rutura, antes "incorpora as mudanças ditadas pela modernidade e pela fantástica evolução da medicina, incluindo os próprios avanços registados no SNS".

"É tempo de semear de novo. Perdeu-se alguma sementeira, mas não se perdeu a semente. E o terreno é fértil", escreve António Arnaut, 38 anos depois de ter lançado a rede pública de cuidados de saúde.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: RLima@expresso.impresa.pt

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