Humor à Primeira Vista

Maria Rueff: “Portugal ainda é uma sociedade patriarcal. Qualquer pintora, escritora, dirá. Nunca é mano a mano, é sempre com dor"

As personagens icónicas de Maria Rueff como Zé Manel Taxista, Idália ou Rosete persistem nas expressões, nos jeitos e nos sotaques que encontramos no humor nacional. Numa conversa com Gustavo Carvalho, a atriz explica como construiu cada uma delas e de que forma contribuíram para o humor português

Maria Rueff está de volta à rádio com “Assim se faz Portugal” na TSF e no teatro, “Lar doce Lar”, peça estreada há dez anos, vai para uma temporada final no teatro Villaret. Na televisão continua na família Herman José, em “Cá por Casa”, na RTP. Em conversa com Gustavo Carvalho, no podcast Humor À Primeira Vista, fala sobre as personagens que marcaram a comédia nacional, conta como conheceu Herman José e Ana Bola, explica porque o humorista pode ser visto como um alvo a abater e aponta um “dramedy” como o projeto em que gostava de embarcar.
O Zé Manel Taxista é uma das tuas personagens mais icónicas?
O Zé Manel é de facto o meu cartão de visita, digamos assim. É um travesti, que também não é muito vulgar, uma mulher fazer de homem. E essa componente benfiquista foi emprestada pelo Ricardo [Araújo Pereira]. E de facto o Zé Manel é uma das coisas que mais me orgulho ter feito. Eu acho que todos os artistas trabalham para conseguir chegar ao maior número, a uma personagem que seja quase universal, e eu fico muito feliz.
E a Maria Rueff conseguiu até interpretar algumas que ficaram. A Idália, por exemplo…
Sim, a Idália no “Nelo e Idália“ Aliás é um dos sketches que de alguma forma tiveram um papel sociológico. Que é um dos papéis do humor, de alguma forma espelhar o que se vai passando na sociedade e repara, quando estreámos esse sketch, não havia ainda sequer lei ou legislação, sobre casamentos gay. E infelizmente devo-te dizer que por mais lei, por mais que a sociedade avance, Portugal em muitas zonas retrocedeu. Ainda há muitos Nelos e Idálias sem necessidade nenhuma para os dois.
Ainda é importante esse conjunto de personagens?
Eu acho que é importante que as pessoas reflitam sempre na vida que têm, sabes que ser feliz dá muito trabalho, é preciso muita coragem, mas eu acho que essa coragem é necessária porque a felicidade compensa.
Porque é que é no humor que se sente primeiro?
Porque o humor trabalha com o avesso, porque o humor faz medo. Esta é a minha opinião, há outros autores, atores, humoristas que divergem.
Faz medo em que sentido?
Faz medo porque ninguém quer ser exposto ao ridículo. Supostamente o humorista tem a arma de ridicularizar o outro. De tirar a pose do outro. O problema é que as sociedades são construídas com poses, então agora cada vez mais com as redes sociais, onde tudo é ego. Não interessa se foste viajar, interessa se apareceu a fotografia contigo no sítio a provar que viajaste ou que provaste o sushi não sei de quem e que vestiste a roupa de não sei de quem. O mundo está cheio de pose, de ego, de individualismo. Qualquer humorista que tem essa varinha de condão, de tirar a pose, de conseguir com uma frase ridicularizar o outro faz muito medo e é um alvo a abater.
Que influência é que acha que tem nas comediantes que agora vemos, mas também no panorama da comédia em Portugal?
Ainda hoje é muito difícil ser uma mulher no humor. Basta procurar na internet para perceber que as americanas, inglesas, etc, queixam-se que dentro das suas sociedades foi sempre necessário partir pedra. Portugal ainda é uma sociedade patriarcal. Qualquer pintora, escritora, dirá o que eu digo. Nunca é mano a mano. É sempre com mais dor. Temos de trabalhar muito mais do que os homens e mesmo assim nem sempre nos permitem sentar à mesma mesa. E eu notei ao longo destes anos avanços, recuos, avanços, recuos... Acho que de alguma forma contribui para inspirar no sentido de (não é que me copiem, não tenho nada essas pretensões), inspirar que é possível uma miúda que esteja em casa e que lhe apeteça pôr um bigode. Porque uma mulher não ri dilatadamente, uma mulher não gargalha, uma mulher tem de ficar no seu canto, tem de aparecer bonitinha. Mas eu não fui a primeira. A Mirita Casimiro foi a primeira comediante portuguesa no teatro a fazer um travesti em cena. Ela entrava a cavalo, fazia um toureiro. Isto é quase como cometas, de vez em quando, de dez em dez anos, vai uma mulher comediante que parece que é a primeira, que revoluciona. Não revolucionei. Acho é que são precisas de vez em quando estas mini Marias da Fonte. No sentido de pegar na arma e dizer “Nós também somos capazes”. Fico muito feliz por haver espaço para mais mulheres e se de alguma forma inspirei no sentido de “Bora lá, nós também conseguimos”.

Gustavo Carvalho faz perguntas sobre comédia. O convidado responde. Sorriem… é humor à primeira vista. Oiça aqui mais episódios:

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: gcarvalho@impresa.pt

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