Será que um dos dramas mais bem sucedidos da atualidade quer, na verdade, fazer-nos rir? ‘Succession’, série da HBO, estreada em 2018, está na reta final. A quarta temporada fecha dia 28 de maio. Vamos conhecer o desfecho da luta interna da família Roy, dona da maior empresa de media e entretenimento do mundo. Pode um drama, sensivelmente baseado na família Murdoch e no clássico King Lear, de William Shakespeare, incorporar a comédia? Em Humor à Primeira Vista, os humoristas Guilherme Ludovice e Rui Mirama conversam com Gustavo Carvalho sobre 'Succession', tentando encontrar respostas. Será esta série uma comédia? Ou apenas o drama mais engraçado de sempre?
Aqui os lucros são grandes, os egos também, a disfunção ainda é maior.
Tudo começa a desmoronar quando o magnata e pai de família Logan Roy decide abandonar a empresa. Shiv, Roman e Kendall, três dos quatro filhos, disputam inaptamente o comando da empresa. Com outros agentes secundários a lutarem por parte do poleiro.
"Succession" é uma comédia, ou um drama engraçado? Guilherme Ludovice: Acho que as fronteiras estão um bocadinho esbatidas. A série aparenta ser um drama, tem um formato de um drama: é uma série da HBO de 45 a 50 minutos, os prémios para que está nomeada é sempre na categoria de drama, os atores são por regra dramáticos, mas há qualquer coisa que nos faz colocar essa questão. Este fim de semana até estive a falar sobre a série com uns amigos meus que nunca tinham visto e pela descrição que fiz parece que era uma comédia. Mas na minha opinião não é uma comédia. Aquilo tem muitos elementos cómicos. Vai buscar muita coisa à comédia, há ali cortes e planos de reação de personagens que parece uma sitcom. Mas não sei, há qualquer coisa para mim que me faz considerar aquilo um drama, mas se calhar é por achar todas as personagens muito, muito deprimentes e não conseguir ver ali um herói cómico clássico, que é de borracha e tudo lhe acontece e reflete como se nada fosse. Mas, hoje em dia, claro que as fronteiras estão muito mais esbatidas. Não acredito nesta conceção clássica de divisão entre tragédia e comédia, porque claramente vai buscar ao outro campo. E é por isso que é tão bem sucedida. Mesmo o tom improvisacional da série implica muita comédia. O próprio criador foi à procura de atores que servissem os dois propósitos. Ele diz que precisava de pessoas que conseguissem acertar as partes dramáticas, que conseguissem ser sérios e credíveis, e que tivesse graça, porque muito do diálogo é improvisado e nasce da interação das personagens.
E o criador refere "Os Sopranos" e "Sete Palmos de Terra" como alguns exemplos de séries dramáticas que conseguiram incorporar comédia. Rui, concordas com o Guilherme? Rui Mirama: Por acaso é muito curioso porque acho que é uma comédia. Acho mesmo que é uma comédia. E atenção, concordo com o que o Guilherme disse, de que as fronteiras estão esbatidas. Um dos grandes sucessos para isto é a comédia estar menos "in your face". E é cada vez mais nas pequenas coisas, nas subtilezas. E começas a ter esta oscilação entre a comédia e o drama, começa cada vez mais a aparecer. Já tiveste em séries no passado, estou a pensar por exemplo no "Louie", do Louis CK, que é uma comédia claríssima, que tem um lado muito dark. Tens um exemplo brilhante disso que é "BoJack Horseman", que é assumidamente uma comédia que tem momentos muito muito dark.
Filosóficos também. Rui Mirama: E mais dramáticos, diria, do que muitas séries de drama. E acho que eles aqui conseguem fazer muito bem esta ginástica. Acho que acima de tudo é uma série de comédia, se tivermos de rotular. Está alicerçada nas tais coisas que mencionaste, no "King Lear", numa coisa shakespeariana. Mas acho que no final de contas aquilo acaba por ser uma série de comédia. [...] Há uma personagem que é o Greg, o primo, que é uma personagem cómica. Acho que o Greg, com as tiradas, com a maneira como ele está no mundo, se nós fizéssemos a edição de "Succession" de uma maneira um bocadinho diferente era um série de comédia básica. Ele é uma pessoa normal, não é multimilionário, não foi criado em berço de ouro. Tem uma família mais ou menos próxima, mais ou menos distante, que são multimilionários, e de repente é inserido num panorama que é completamente estranho para ele. E ele enterra-se. Há personagens que dizem tudo com muita certeza.
E ele é exatamente o seu contrário. Rui Mirama: É o inseguro, é a pessoa normal. É o que também faz um bocado a ligação ao telespetador. Mas se a narrativa fosse do ponto de vista do Greg, isto seria uma comédia. [...] Dependendo da edição que desses à série em si, ela pode-se assemelhar mais aos moldes tradicionais da comédia, ou menos. A maneira como está neste momento afasta-se um bocadinho. E segues os vários episódios de cada um, e tens momentos muito muito pesados. Mas depois tens algumas personagens que são... não queria dizer comic relief, mas que acabam por ser assim mais aligeiradas. E se meteres as coisas do ponto de vista do Greg, se a série se chamasse "Greg e a família milionária" é quase um "The Fresh Prince of Bel-Air". E tens várias personagens e cada uma tem um estilo de humor particular. Tens uma coisa muito caótica no Roman, e tem piada que aquilo saiu um bocadinho dos moldes como costuma ser trabalhado o humor. As coisas com mais graça que ele diz são quase balbuciadas. Que é contra os cânones, geralmente quando estás a fazer comédia a punchline é uma coisa definida. Quando estás a contar uma piada até fazes uma pausinha a seguir, para as pessoas perceberem que isto é a piada. Como havia nos "Friends", em que havia a pausa para a malta bater palmas, ou no “Seinfeld”