Humor à Primeira Vista

Kotingo: “Estava no hospital e já tinha piadas. Olhei para a situação e tirei proveito: eu não perdi um braço, um braço é que me perdeu”

“Hoje, as sociedades são tão sensíveis, tão corretas, que esquecem que nós enquanto seres humanos somos imperfeitos. Mas queremos perfeição. Vivemos numa sociedade que diz que não se faz humor com nada. Com política não se pode, com religião não pode, com gordos não pode, com magro não pode, com cego não pode. Não se pode com nada. Nós humoristas só existimos porque somos teimosos”, afirma Kotingo. Em conversa com Gustavo Carvalho, no podcast Humor À Primeira Vista, o comediante angolano explica porque faz piadas sobre ter perdido um braço num acidente de viação, compara a comédia angolana com a portuguesa e fala sobre o destaque que o amigo Gilmário Vemba conquistou em Portugal

José Fernandes

De Benguela para o mundo, Edgar Tchipoia, conhecido como Kotingo, conquistou Angola com a sua comédia e tem agora os olhos postos em Portugal. Com várias participações na televisão angolana - e com 850 mil seguidores no Instagram - tornou-se um dos humoristas mais reconhecidos do seu país.

Faz comédia em palco desde 2007, mas stand-up “puro” só há uns meses. Prepara-se para testar as águas portuguesas com um espetáculo a solo, com datas em Lisboa e no Cacém. Os espetáculos contam com a produção do LX Comedy Slam, projeto impulsionado por Rainner Brito, cujo objetivo é diversificar o panorama do humor em Portugal e destacar comediantes negros.

Em conversa com Gustavo Carvalho, no podcast Humor À Primeira Vista, Kotingo explica porque faz piadas sobre ter perdido um braço num acidente de viação, compara a comédia angolana com a portuguesa e fala sobre o destaque que o amigo Gilmário Vemba conquistou em Portugal. Junta-se também à conversa Rainner Brito, do projeto LX Comedy Slam, para nos dar a conhecer os eventos que têm realizado para dar palco a comediantes negros em Portugal.


José Fernandes

Em 2018 tiveste um acidente de viação. Ficaste sem parte do braço esquerdo. Já te vi a fazer piadas sobre esta situação. Quão depressa começaste a fazer piadas sobre isso?
Foi muito fácil, acho que menos de um mês. Ainda no hospital já tinha piadas, já escritas. Foi rápido. Acredito que tem muito a ver com o meu propósito, com as minhas responsabilidades. Porque as dificuldades nunca devem ser maiores do que a vontade de vencer. Com as coisas que eu quero alcançar, não tive tempo para ficar a chorar. Não tenho tempo. E também não é saudável. Tive de olhar para a situação e tirar proveito. Tornou-se num fragmento que compõe o Kotingo que sou hoje.

Fazer piadas sobre isso ajudou-te a superar a situação? A torná-la positiva?
Eu acho que sim, mas não usei como terapia. Acho que é uma cena que faz parte de mim mesmo. Se for esmiuçar de forma profunda, se calhar sim. Não senti falta porque fui criando piadas. E há outras em que fiquei a rir sozinho. Dou-me por feliz por ter dado a volta e continuar a fazer o meu trabalho. Verdade seja dita, há coisas que eu já não consigo fazer sozinho. Há outras que consigo fazer, mas faço de forma diferente. Então, o que é eu pus na minha cabeça? Que não vou deixar de viver, é mais uma oportunidade de continuar a viver, mas de forma diferente. Por exemplo, vocês que têm duas mãos dizem "chapada sem mão". Eu não posso falar "chapada sem mão" só assim. Vou dizê-lo de forma diferente, tipo "vais levar uma da esquerda". Acho que me tornou mais diferente ainda.

Como é que reagem as pessoas que não tendo essa condição te vêem a fazer piadas sobre isso? Porque há sempre um desconforto, mas se um comediante vai a palco e reparam que não tens parte do braço esquerdo, és quase forçado a abordar o assunto, ou parece que há um elefante na sala.
Não é muito por aí. Eu simplesmente faço porque quero fazer. É inevitável, é mais forte do que eu. Dá-me gozo. Adoro, adoro… já que o braço saiu. Aprendi com o C4 Pedro que eu não perdi um braço, um braço que me perdeu. E faz todo o sentido. A menor parte é que saiu. Porque me perder não é bom.


José Fernandes

Mas então como é que as pessoas reagem?
Algumas ficam desconfortáveis, mas dentro de uns minutinhos, depois ficam mais... há pessoas que pensam "Que horror". Sou eu, estou a falar de mim mesmo. E há outras pessoas que mandam mesmo mensagem. "Tu não podes falar isso porque há outras pessoas que estão na mesma situação e ainda não superaram.” Mas calma aí - com todo o respeito, porque devemos respeitar a dor dos outros para que os outros respeitem a nossa - não posso deixar de viver porque há uma pessoa que se está a sentir mal. Estou a falar de mim. Eu olho assim para mim. E o facto de ter perdido um braço, juro que senti-me na liberdade de falar dos aleijados. Porque é diferente, juro que é diferente, na minha perspetiva, se forem vocês a falar de aleijados… eu também sou. E me cuia bué. "Cuiar" é tipo "é bom", é fixe.

Hoje, as sociedades são tão sensíveis, tão corretas, que esquecem que nós enquanto seres humanos somos imperfeitos. Mas queremos perfeição. Eu já não me considero humorista, nem os outros humoristas. Nós somos teimosos. Porque vivemos numa sociedade que diz que não se faz humor com nada. Com política não se pode, com religião não pode, com gordos não pode, com magro não pode, com cego não pode. Não se pode com nada. Nós só existimos porque somos teimosos. Gordo, magro, aleijado, seja lá o que for, fazem parte de uma sociedade. Se tu proíbes que se fale delas, isso é exclusão social. E o que eu faço, falando delas, é inclusão social. E quando fazemos certas piadas, as pessoas que vêm reclamar não têm nada a ver... quando se fala de gordo, quem vem reclamar não é gordo, é magro. Quando se fala de magro, quem vem reclamar nem é magro. Lá no fundo, essas pessoas se sentem representadas. Quando não falam também é estranho. Sendo humorista - não possa falar de todos, falo de mim - não existe a vontade de magoar quem quer que seja. Vou lá para fazer rir. Só que as pessoas têm de se despir de tudo e viver o momento. É para divertir.


Gustavo Carvalho faz perguntas sobre comédia. O convidado responde. Sorriem… é humor à primeira vista. Oiça aqui mais episódios:

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: humoraprimeiravista.podcast@gmail.com

Comentários

Assine e junte-se ao novo fórum de comentários

Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes

Já é Assinante?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate
+ Vistas