A Beleza das Pequenas Coisas

Nuno Baltazar: “Não precisamos de tanta roupa. Não é só o lixo em que se transformam, é o lixo de onde vêm à custa de mão-de-obra imoral”

Há mais de duas décadas que Nuno Baltazar é um dos nomes mais interessantes e incontornáveis da moda de autor portuguesa. As mulheres são o mar profundo que norteia as suas criações e que lhe valeram inúmeros prémios, como o Globo de Ouro de melhor designer do ano, em 2013, e a comenda da Ordem do Infante D. Henrique, em 2015. Para ele a beleza tem muitas formas. “Sempre achei a falha e o desequilíbrio fascinantes, porque é humano, tem camadas. A perfeição é aborrecida.” Em 2019 bateu com a porta do Portugal Fashion e afirma ter ganho ar. “O Portugal Fashion é um trampolim para uma carreira política dos dirigentes da ANJE. E os criadores de moda vestem um papel ingrato. Estava a ser destratado. Aprendi que quando temos a coragem para ter voz passamos a ser mais respeitados.” No próximo dia 12 de março, Nuno Baltazar apresenta a sua 38ª coleção, pelas 19h30, na Moda Lisboa, em Marvila. Uma criação a que chamou “Transverse”, a cruzar a cultura popular com a cultura queer, numa reflexão sobre os novos movimentos identitários. Ouçam-no no podcast “A Beleza das Pequenas Coisas”, com Bernardo Mendonça

Depois da pandemia, em que o mundo ficou confinado em casa de pijama ou fato de treino, e agora que vivemos tempos de crise e de guerra, qual o lugar da moda portuguesa de autor? O que mudou na forma de estar, sentir e vestir das pessoas? Pode a roupa ainda ser uma segunda pele de emoção, sonho e revolução? O que é agora acessório e essencial no que vestimos? Pode a moda de autor ajudar a contribuir para mudar o paradigma da ‘fast fashion’ que é uma das maiores criadoras de poluição no planeta?

O que parece certo é que as novas gerações já não deverão escolher a roupa só pela imagem que o espelho devolve, mas se são ou não um lixo para o ambiente. E sustentabilidade passou a ser uma palavra que veste bem.

Estas são algumas das questões e assuntos lançados logo no arranque deste podcast ao criador de moda Nuno Baltazar, semanas antes de apresentar a sua 48ª coleção na “Moda Lisboa”, a que deu o nome de “Transverse”, uma criação subversiva que cruza elementos religiosos e populares e os descontextualiza num universo queer.

Há quem descreva Nuno Baltazar como “o designer da elegância e da perfeição”. Mas a verdade é que ele valoriza igualmente a beleza da imperfeição e um certo desequilíbrio. Porque rima com emoção, intensidade e paixão. Homem sensível, apaixonado e muito crítico sobre os bastidores da moda, chega a afirmar neste podcast: “Quem anda a passeio na moda de autor não é criador. São pessoas movidas pela vaidade, exposição, por serem uma figura pública, pelos ‘likes’. Ao ouvirmos as entrevistas no final dos desfiles percebemos o que move uns e outros. Tudo tem o seu lugar, mas a importância que se dá tem de ser diferente.”

E, neste episódio, Nuno estende a crítica a eventos como os Globos de Ouro que retiraram de cena os criadores de moda de autor. “Como se retrocede ao ponto de nos Globos de Ouro ter deixado de haver uma categoria a premiar os autores de moda? E, ainda por cima, num evento que se alimenta muito de nós. É muito mau. Devia haver um boicote. Já deixei de fazer vestidos para os Globos de Ouro.”

O percurso de Nuno na moda nacional já conta com 25 anos, desde que entrou no curso de Design e Moda, no Citex, em 98, depois de desistir do sonho da dança. Desde aí foram muitas as emoções que vestiu e muitos os prémios que ganhou. Mas tudo aconteceu depressa demais. “Saltei etapas. Devia ter ido para fora algum tempo. Faltou-me amplitude de olhar e gostaria de ter perdido o medo mais cedo. Só perdi o medo há oito anos quando percebi que procurava a minha mãe em todas as mulheres que me inspiram.”

Nuno desenha acima de tudo para mulheres. Deusas de várias idades que o inspiram como Amália, Sophia de Mello Breyner, Marguerite Duras, Virgínia Woolf, Maria Callas, Piaf, Jessica Lange ou Meryl Streep. E em todas estas mulheres procura a sua mãe, Elsa. O grande amor da sua vida. Para quem é o Nuno Tiago. O nome pelo qual responde desde criança a toda a família.

Talvez o período menos leve da sua vida, em que aprendeu cedo a guardar no coração as angústias do que não deveria ter vivido. E nesta conversa em podcast, Nuno é generoso na partilha e conta como a fragilidade da saúde mental da sua mãe determinou muito do seu caminho, já que mesmo na ausência quotidiana da mãe, a sua presença sempre foi muito forte na sua imaginação. E explica que foi aí que começou a compor, o que muito mais tarde percebeu ser o seu universo feminino.

Nessa altura gostava de imaginar que tudo seria um ensaio para um episódio da telenovela “Vila Faia”. Ou que os olhos da sua mãe, maquilhados de véspera, esborratados de rímel ou eye-liner, seriam parte de uma qualquer composição dramática e Nuno Tiago muito orgulhoso por saber que ela era especial.

Sobre si, Nuno assume ser intenso, de muitas emoções, que pratica a empatia no quotidiano e procura sempre ser melhor pessoa. “Sou uma montanha russa e estou sempre à procura da minha melhor versão. Tendo consciência que nunca vou ser perfeito e que são os pequenos detalhes que fazem a diferença. Tenho muita coisa para corrigir. Às vezes resvalo, mas maioritariamente dou passos em frente.”

Entre as muitas partilhas e reflexões neste podcast, Nuno fala ainda da playlist (em construção) que tem tatuada nos braços e no pescoço e revela que a sua super-heroína preferida é a personagem da Ana Bola que dá com panos encharcados na tromba.

E deixa claro que André Ventura estaria na frente da lista de pessoas a quem daria com vários panos encharcados. E a esse propósito comenta um dos seus grandes temores. “Receio que ainda tenhamos, num futuro não longínquo, que lutar pelo que foi construído pela geração antes da minha. Acho que tem de se combater diariamente os movimentos de extrema direita. É nas pessoas que nos rodeiam que o nosso círculo de influência começa e se expande, para escutarmos e argumentarmos, para que as pessoas se consigam colocar no lugar do outro.”

Mas Nuno fala também sobre amores eternos e a beleza das flores pequeninas. “O que mudou mais a minha vida foi ter morrido o meu grande amor. Quando isso acontece é impossível não mudar. O corpo muda, os ecos e os silêncios mudam. E passa-se a ter uma solidão que permite pensar em como amamos e como fomos amados ou desamados. Volta-se a amar de uma maneira diferente, são histórias, corpos e momentos diferentes. E aquele amor não desaparece, segue sempre.”

E Nuno Baltazar ainda nos dá música e poesia, ao ler um belíssimo texto de Mário Cesariny dirigido a Cruzeiro Seixas. E chega a ser surpreendido com o testemunho de um dos seus grandes amigos, o criador Dino Alves. E aqui revela que o humor também os veste bem. “Acho que eu e o Dino devíamos ter um espaço de comentário social numa qualquer televisão. Os dois num balcão de teatro, tipo velhos marretas.”

Como sabem, o genérico é uma criação original da Joana Espadinha. Os retratos são da autoria de Tiago Miranda. A sonoplastia deste podcast é de João Martins e Salomé Rita.

Voltamos para a semana com mais uma pessoa convidada. Até lá, já sabem: pratiquem a empatia, boas escutas e boas conversas!

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: BMendonca@expresso.impresa.pt

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