Maria Filomena Mónica é uma lutadora desde sempre. Num país machista, onde as mulheres foram tratadas sempre como gente sem importância e se esperava que se casassem e fossem educadas - ou “domesticadas” - com os predicados de “belas e recatadas do lar”, Maria Filomena Mónica rompeu com essa expectativa, ousou pensar pela sua própria cabeça e forjou um futuro mais grandioso, livre e independente para si. Casou cedo, teve dois filhos e quando a sua vida divergiu para o sentido oposto do seu marido decidiu divorciar-se, mesmo contra a vontade da família, e foi estudar para Oxford, em Inglaterra, com uma bolsa da Gulbenkian. Não terão sido certamente tempos fáceis, para gerir a maternidade com os estudos em Oxford, mas conseguiu o feito e acabou por ser a primeira pessoa a doutorar-se em Sociologia em Portugal.
Desde aí dedicou a sua carreira à investigação e é autora de uma vasta bibliografia histórica e sociológica, como o “Educação e Sociedade no Portugal de Salazar”; “Sala de Aula” ou “Os Pobres”, “Os Ricos” e “Vida moderna”. E, mais recentemente, publicou “O Olhar do Outro” e “O meu país”. É também autora de biografias de Eça de Queirós, Cesário Verde, D. Pedro V e Fontes Pereira de Melo. Mas talvez a sua obra mais popular e comentada tenha sido a sua autobiografia “Bilhete de Identidade - memórias de 1943 a 1976”, publicada pela primeira vez em 2005, onde revelou sem pudores ou censuras o seu ponto de vista sobre o passado e as pessoas com quem se cruzou. O livro criou na altura um tremor na sociedade e provocou algumas brigas e zangas na sua família e círculo de amigos. Mas Maria Filomena Mónica não vive nem escreve para agradar, mas para ser fiel a si própria e à sua vontade.
"A família é um lugar estranho que nos países mais católicos tende a fechar-se sobre si e a guardar os segredos a sete chaves, dando uma aparência de grande harmonia interna que é uma fachada hipócrita", chega a dizer neste episódio.
Os portugueses não estão habituados a autobiografias ou a polémica terá subido de tom por ter sido uma mulher a escrever com tanto desassombro sobre as suas memórias num Portugal suave e de brandos costumes? “Acho que são as duas coisas. Os países latinos não têm nenhuma tradição biográfica. Nem em Portugal, nem em Espanha, nem em França. Deve ser um traço cultural que, como disse, tende a forçar as pessoas a aparentar uma fachada de grande harmonia. Isso não se passa nos países anglo-saxónicos. Eu escrevi a minha autobiografia, porque tinha lido uma autobiografia de uma americana, a [escritora, crítica literária e ativista política] Mary McCarthy que se chamava “Memórias de uma infância católica”. Li o livro e fiquei fascinada, ela era completamente desassombrada. E pensei: “Quero fazer igual!” Mas ela foi muito mais desassombrada e teve muitos mais casos amorosos do que eu. (risos)”
Há oito anos que Maria Filomena Mónica luta contra um cancro e pouco sai de casa. E conta que o que a tem salvado é a escrita. "Escrever foi a melhor forma que descobri para lutar contra a depressão causada pelo cancro."
Há tempos, Maria Filomena Mónica decidiu remexer nas centenas de cartas, postais e documentos que herdara da família, para arrumar as memórias, e acabou por desenterrar segredos sobre a sua mãe e a sua avó que nunca desconfiara. A conselho do seu marido, António Barreto, que ficou fascinado com tal espólio, começou então a escrever sobre esse passado longínquo e sobre as mulheres que marcaram a sua família. Chamou-lhe “Duas mulheres” numa espécie de prequela autobiográfica do seu “Bilhete de Identidade” e acaba de o lançar, com a chancela da Relógio d´Água. Terá Maria Filomena Mónica tentado entender melhor de onde vinha para perceber melhor como se forjou enquanto mulher? Nesse processo fez as pazes com um certo passado? A socióloga responde a tudo isso neste episódio e deixa ainda dito: "Não posso dizer que me sinto satisfeita com a vida que tive, é presunçoso. Mas, olhando para trás, nas coisas importantes, penso não ter falhado. E isso dá-me satisfação. A morte é inevitável. Não me aterra. Aterra-me o sofrimento físico."
Mas há muito mais a escutar neste episódio, onde a socióloga ainda nos dá a conhecer algumas das músicas da sua vida e lê um excerto de um poema de Cesário Verde.
Como sabem, o genérico desta nova temporada é uma criação original da Joana Espadinha, com mistura de João Firmino (vocalista dos Cassete Pirata). Os retratos são da autoria de António Pedro Ferreira. E a edição áudio deste podcast é desta vez do João Luís Amorim.
Voltamos para a semana, com mais uma pessoa convidada. Até lá escrevam-nos, comentem, classifiquem o podcast e, já sabem, pratiquem a empatia e boas conversas!
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