Em 2021 Gaya de Medeiros deu que falar com o seu “Atlas da Boca”, uma co-criação com Ary Zara, considerado pelo jornal Expresso como um dos melhores espetáculos de 2021, e que foi o resultado de uma residência artística na Companhia Olga Roriz, a partir de uma investigação. Uma investigação de dois corpos trans acerca da boca como lugar de intersecção entre a palavra, a identidade e a voz, o público e o privado, o erotismo e a política, buscando novas narrativas, explorando os “verbetes” que se abrem da boca para fora e que se leem da boca para dentro. Interessante esta questão de se ler “da boca para dentro”, para nomear o que está para além das palavras ou o que não se mostra ou se esconde atrás delas.
Nascida em Belo Horizonte, no Brasil, Gaya, de 31 anos, é uma bailarina e coreógrafa com fome de chegar à verdade e à essência dos outros e de si própria. E há muito que é brava a atravessar muros, preconceitos, dificuldades, impossibilidades, ou mesmo oceanos para ser mais inteira, autêntica e para se ouvir melhor… da boca para dentro.
Fez parte da companhia de dança contemporânea “Palácio das Artes”, em Minas Gerais, e tem assinado vários trabalhos a solo.
Destaque para a performance tragicómica “After Party”, que Gaya criou para se despedir da sua falecida mãe. Um ritual para rir e chorar, lembrar e esquecer, enterrar e não colocar terra por cima. E já que a sua mãe partiu antes da sua transição, esse foi também um ritual de encontro entre uma mãe e uma filha que não tiveram tempo de se conhecer. "A dança tem servido para tratar questões maiores do que a minha racionalidade consegue processar, deixando-as virar emoção e suor", chega a dizer neste episódio.
Gaya, nome inspirado na deusa da terra nas mitologias grega e romana, surgida do caos e da escuridão, e que é a origem e a base de todas as coisas que vieram depois dela, passou a ser o seu nome e a sua identidade enquanto mulher ‘trans’, quando em 2019 atravessou o oceano para Portugal e para um outro lado de si. "Não sou nem mulher, nem sou homem. Sou uma travesti com orgulho. É mais saboroso do que continuar a ser um menino!", chega a afirmar neste podcast.
Por cá trabalhou com Gustavo Ciríaco no “Em deriva”; com Tiago Cadete no “Brasa” e com Sónia Baptista no “WOW”, na Culturgest, em Lisboa.
E enquanto drag queen, apresentando-se como “Babaya”, foi eleita a “Miss Drag Lisboa 2019” e chegou mesmo às semifinais do programa televisivo “Got Talent Portugal 2020”, na RTP.
Mas o seu talento tem alcançado muitos outros palcos. No cinema acaba de protagonizar a curta-metragem “Um caroço de abacate”, dirigida por Ary Zara, onde contracenou com o ator Ivo Canelas, que valeu dois prémios e uma menção no Festival IndieLisboa. No teatro será a travesti “Agrado” no elenco da peça “Tudo sobre a minha mãe”, a partir do icónico filme de Pedro Almodóvar, com encenação de Daniel Gorjão e estreia marcada para janeiro de 2023 no Teatro São Luiz, em Lisboa. Além disso, está a criar o espetáculo "E se nós (três pontos)”, onde através da dança e da poesia procura desconstruir os papéis de género na intimidade. E, claro, importa destacar a plataforma “BRABA” que Gaya criou para apoiar, viabilizar e financiar criações protagonizadas e direcionadas para a comunidade Trans ou não binária. Para lhes dar mais visibilidade, representatividade e possibilidade de existência e de fala.
Os palcos e a sociedade começam finalmente a ser mais inclusivos para estas identidades? Os tempos são de mudança ou há ainda muito caminho para fazer?
"Nunca vimos tantas pessoas 'trans' em palco ou na TV. Finalmente podemos ser nós artistas 'trans' a contar as nossas histórias.", comenta Gaya com orgulho.
Projetos, ideias e vontades não faltam a Gaya de Medeiros que afirma ser “militante do afeto e do sorriso aberto”, apesar de certas dores existenciais, e que encontra na dança e na poesia a melhor forma de refletir sobre si, o mundo e as outras pessoas, e tem desbravado caminho para curar ou transformar certas feridas e revoltas em momentos de beleza, confronto ou questionamento. Porque a arte é sempre maior quando nos transforma de alguma maneira. "Sou movida pela sombra do encontro. Fico louca por saber qual o lado B, mais sombrio, mais frágil, mais murcho ou cansado da outra pessoa."
Mas ainda nos dá a conhecer algumas das músicas da sua vida e lê um excerto do livro que anda consigo: “Um apartamento em Urano: Crónicas da travessia.”
Como sabem, o genérico desta nova temporada é uma criação original da Joana Espadinha, com mistura de João Firmino (vocalista dos Cassete Pirata). Os retratos são da autoria de José Fernandes. E a edição áudio deste podcast é desta vez do João Luís Amorim.
Voltamos para a semana, com mais uma pessoa convidada. Até lá escrevam-nos, comentem, classifiquem o podcast e, já sabem, pratiquem a empatia e boas conversas!
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