Alice Neto de Sousa: “Sou poeta e falo das minhas inquietações. Fico contente por chamar os olhos do público para estes ‘ismos’. A próxima é sobre as prostitutas do metro do Martim Moniz”
Se a poesia não costuma movimentar multidões, a poeta Alice Neto de Sousa conseguiu a proeza, já que está a circular nas redes sociais um vídeo onde surge a ler o poema “Poeta”, que desmonta preconceitos com a cor da pele. A sua poesia e a sua voz são tão certeiras nesta ferida social que até já passaram fronteiras. Conheçam-na melhor neste episódio de A Beleza das Pequenas Coisas, uma conversa com Bernardo Mendonça
Ela é um fenómeno nas redes sociais e tem espalhado poesia, como quem espalha perfume, inquietação, humanidade e consciência social por onde passa e é vista. Há quem lhe chame a nossa Amanda Gorman, a poeta americana que deu que falar na tomada de posse do Presidente Joe Biden. Mas as comparações são sempre injustas e redutoras. A sua popularidade disparou quando começou a circular um vídeo em que declama os versos de “Poeta”, um texto da sua autoria que já a habita no avesso da pele, e que fala sobre o instante revelador em que uma criança se dá conta de que os lápis com que ia pintar têm uma cor chamada “cor de pele”.
O que raio é um lápis cor de pele? Pergunta a poeta Alice, de 28 anos, e rasga no papel do preconceito vários séculos de estigma, de violência, de desigualdade e racismo. Mas a própria rejeita o rótulo de poeta anti racista ou ativista. “O único rótulo que posso ter é ser poeta. Sou Alice, a poeta, e falo das minhas inquietações. Tenho várias! Fico contente por ter chamado os olhos do público para a minha primeira inquietação. A próxima é sobre as prostitutas do metro do Martim Moniz…”
E neste seu caminho, Alice já fez a sua poesia bater asas até Angola, onde a própria nunca foi, mas tem família. E foi com orgulho que se apresentou poeta à família angolana. E até já houve quem dissesse com alegria por aquelas terras. “Ela é nossa!”
Licenciada e mestre em Reabilitação Psicomotora, a especializar-se na área da surdez, a primeira vez que falou em público, e recebeu largos aplausos, foi como aluna de mestrado de Psicomotricidade, quando foi convidada peloprofessor e escritor Gonçalo M. Tavares a ler um trecho do seu livro “Uma Menina Está Perdida no Seu Século à Procura do Pai”. Na verdade foi Alice que foi atrás dessa oportunidade. Como tem ido sempre atrás de tantos outros lugares e sonhos que persegue e quer ocupar. “Ninguém se lembrou de mim. Não esperem na torre do castelo, por maiores que sejam as vossas tranças.“ Mais tarde, o autor escreveu nas suas fitas de estudante que Alice “ia fazer coisas grandes e fortes”. E, como se vê, o oráculo do mestre Gonçalo M. Tavares começa a cumprir-se.
No Brasil, em 2021, Alice viu o seu poema “Terra” dar nome à coletânea “Do que ainda nos sobra da guerra – e outros versos pretos” publicado na Editora Ipêamarelo. Pelo Selo Mirada, participou nas antologias “Amor nos Tempos de Lonjura”, “Teus Olhos Rímel com Poesia” e na revista “Laudelinas”, com os poemas “A um amor con(tu)ndente”, “Beijo” e “Passa o tempo”.
Em Portugal, participou nas antologias de “Poesia Portuguesa Contemporânea” e “Liberdade” da Chiado Books, com os poemas “Descalçar”, “As decisões”, “Calafrio”, “De ti”, “Abismo Silencioso”, “Velas” e “Só mais um pouco”.
Atualmente é poeta convidada regular no programa “Bem-Vindos” na RTP África, faz parte da bolsa de poetas dizedores da associação cultural “A Palavra” – sob o lema “A Poesia por quem a trabalha” – e descobriu a “Poetry Slam”, um concurso que coloca poetas frente a frente, num palco, a recitar os poemas que escreveram, para depois serem avaliados por um júri.
Inquieta por natureza nas palavras e nas escolhas, em pequena Alice era vista como uma ‘alma velha’ porque assustava os adultos com as dores e inquietações que saltavam dos seus poemas. Curiosamente um dos seus grandes prazeres era estar sozinha no quarto a pensar. Apenas a pensar. E aqui recorda como ia beber à dor da poesia de Florbela Espanca que a traduzia como ninguém quando Alice não sabia dar palavras para o que sentia. Ainda hoje um dos seus maiores prazeres são a liberdade de pensar e de sentir. E sobre o que vai dentro dos seus escritos e poemas, chega a citar a coreógrafa alemã Pina Bausch: “Não importa como eles se movem importa o que lhes move.”
Certamente Alice Neto de Sousa ainda vai dar muito que falar. Já que tem a “língua afiada” para temas sociais emergentes. Mas o melhor é mesmo ouvirem-na neste episódio do podcast “A Beleza das Pequenas Coisas”, onde faz muitas mais partilhas, lê vários poemas e partilha algumas das músicas que a acompanham.
Como sabem, o genérico desta nova temporada é uma linda criação original da Joana Espadinha, com mistura de João Firmino (vocalista dos Cassete Pirata). A nova imagem é assinada pelo fotógrafo Tiago Miranda e pelo gráfico Mário Henriques. O retrato é da autoria de João Carlos Santos. E, como habitualmente, a edição áudio deste podcast é do João Luís Amorim.
Voltamos para a semana, com mais uma pessoa convidada. Até lá, já sabem, pratiquem a empatia e boas conversas!