“Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só falta uma coisa - salvar a humanidade.” Quem o escreveu foi Almada Negreiros. Um escrito sábio que aparece citado pelo escritor Valter Hugo Mãe nas primeiras páginas do seu último livro, antes de mergulhar fundo nas memórias do seu passado. Valter Hugo Mãe chamou à sua obra autobiográfica “Contra Mim”. Lançada em outubro pela Porto Editora num “ano introspectivo”, é um livro à procura da criança e adolescente com “o mais limpo dos corações”, que - a viver em Paços de Ferreira e depois em Vila do Conde, Caxinas - conta como muito cedo percebeu que “as palavras eram jóias” e como passou a apanhar o dinheiro que caía da boca das pessoas. “Pirilampo”, “manhã”, “cristal”, “fogo”, “longe” e “amigo” foram, a dado momento, as suas palavras preferidas.
Curiosamente a sua atual palavra predileta é ‘disforia’. E a explicação que dá é deveras curiosa, mas o melhor é mesmo ouvirem-na pela sua voz, neste episódio do podcast "A Beleza das Pequenas Coisas".
Através do seu livro e desta conversa, ficamos a saber como era o pequeno Valter, que um dia pediu licença para morrer quando a mãe lhe perguntou se não queria ir para a escola infantil aprender coisas e ter amigos e como sentia que os adultos se esforçavam para curarem as crianças da infância. E ficamos a saber coisas extraordinárias como os ‘milagrinhos’ de que foi capaz ou a magia que ensaiou para fazer nascer peixes, pirilampos e amigos da terra, dos rebuçados amarelos e de uma jarra cheia de água. Ou até mesmo como foram os primeiros beijos de boca fechada e a descoberta das revistas malandras de adolescente. E aqui conta que este livro só aconteceu por causa dos meses de confinamento.
“Perante este pasmo assustado da pandemia senti-me exposto a um certo espelho. Tive a sensação de que confinar em casa, numa certa clausura, era estar em dobro porque não podemos adotar um certo disfarce que são as relações, os encontros com os outros. Nessa normalidade quando podemos frequentar os outros temos a sensação de que nos expomos. Acho que é ao contrário. Porque o encontro com os outros também nos mascara, quando estamos com os outros estamos numa espécie de distração que a própria gestão social levanta. Estamos habituados a certos rituais e até a certas etiquetas que se desmontam quando estamos em profunda solidão. Quando estamos entregues a nós mesmos há toda uma etiqueta que se desmonta e, às vezes, desmontando-nos demais. Isso significa que a solidão é de facto um espelho diante de nós. É um modo de nos conhecermos.”
Mas Valter Hugo Mãe não augura um futuro próximo animador para a humanidade. “Tenho a sensação de que enquanto coletivo não vamos aprender muito depois da pandemia. Pelo menos num primeiro instante as pessoas vão utilizar a normalidade de forma desaustinada, o que significa que vamos voltar a uma aparente normalidade, mas ainda mais degenerada e predadora. Vamos evoluir num sentido mais consumista, mais egoísta. Porque, de repente, as pessoas sentem necessidade de serem compensadas, num sentido profundamente infantil. Quando libertas de alguma coisa que acham que não mereceram, tornam-se carentes e mimadas. E nós, em algumas situações, já vamos assistindo a essa prática de auto indulgência em que as pessoas se querem compensar com alguma coisa por algo que acham que não mereciam ter vivido. E, na verdade, nenhum de nós precisava de estar sujeito a uma pandemia. Genericamente não é que a mereçamos, mas a atitude do indivíduo que surge como um ressentido não augura a médio prazo um futuro feliz.”
Sobre o estado frágil em que está a cultura deixa o recado: "A cultura não é ociosa e constrói humanidade. Os artistas não são vadios, parasitários, a vampirizar um sistema. Os governos não perceberam ainda nada."
E, mais à frente na conversa, chega a partilhar as graçolas de alguns por há muito ter trocado o apelido 'Lemos' por 'Mãe'. “Tenho amigos que me mandam desencarnar da maternidade. Dizem: 'Sai mãe de dentro do Valter Hugo'. Mas há qualquer coisa no meu perfil que é materno. Um cuidado extremo com o outro.” E sobre a sua progenitora ainda nos conta: “A minha mãe é maravilhosa e agora é minha filha. Mas até deixo que ela pense que está cuidar de mim para cuidar eu dela. Sou férreo nessa protecção. Empenho-me para que o seu quotidiano seja uma festa contínua."
Neste episódio, o escritor chega a ler um excerto comovente do seu livro, partilha as músicas que anda a ouvir e... surpreende-nos a cantar à capela um tema dos Madredeus.
Mas há bem mais para escutar, descobrir e se surpreender neste episódio do podcast "A Beleza das Pequenas Coisas". Mais uma vez, a edição áudio é do José Cedovim Pinto. A fotografia é do Nuno Botelho e o genérico é uma criação original do músico Luís Severo.
Mantemos o desafio a todos/as os/as ouvintes para que enviem as suas opiniões, sugestões, histórias e comentários para o seguinte email: abelezadaspequenascoisas@impresa.pt.
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: oemaildobernardomendonca@gmail.com