Era uma vez um torcionário que usou as suas habilidades para obter provas de um complicado ato de terrorismo em preparação. A Polícia soube da tortura e prendeu-o. Acusou-o dos mais hediondos crimes de tortura, sequestro, violência, banditismo e todos os mais aplicáveis. Porém, dias depois percebeu que ele tinha importantes informações e resolveu negociar: ele dizia o que sabia e a coisa começaria a correr a seu favor.
Mais, percebeu que ele tinha eficazes métodos de tortura, e passou a usá-lo noutros casos graves por desvendar.
Passava-se este caso num país onde não havia prémio para a delação. Contudo, ninguém parecia indignar-se, pois o algoz estava a ir no bom caminho. Estava a passar de criminoso a eficaz-polícia-auxiliar. Seria isto possível?
Esta história acaba aqui. Não tem moral para se tirar.
E não é real. É uma caricatura, arte que sempre exagera para melhor mostrar a realidade.
Esqueça-se o horror do torturador e passemos para a mais pacífica atividade dos piratas informáticos.
Rui Pinto, o hacker que tanto tem sido detestado como louvado -- presumível autor de 90 crimes, preso com foguetório e fanfarra, exibido de algemas e sujeito a violenta prisão preventiva --, é agora um cidadão com liberdade apadrinhada pelos que tanta punição lhe queriam aplicar. Pode mesmo nascer a suspeita de que as autoridades tinham sido implacáveis na detenção, com o premeditado objetivo de o “quebrarem” e assim conseguirem fazer do criminoso um colaborante.
Rui Pinto não passou informação que tivesse obtido de forma lícita. Ele não é uma personagem de um conto em que um funcionário, na sua atividade, se apercebe que algo vai mal, na empresa ou serviço em que trabalha, e corre até as autoridades para denunciar. Nem tão pouco a do contabilista que martela contas e depois, arrependido, vai entregar-se, revelando o esquema que ajudara a ocultar. Se fosse, era um delator, e esses não têm prémio.
Não. Este hacker estava preso por alegadamente ter entrado em sistemas informáticos, sacado preciosíssimas informações e tê-las tornado públicas. Aparentemente, tê-las-á feito chegar a jornalistas. A devassa, ainda que se possa admitir ter sido cometida com boas intenções, parecia estar provada. Até chantagista lhe chamaram.
Caberia pois aos tribunais avaliar se os meios usados justificavam os fins – coisa rara de acontecer, quando se atingem os objetivos à custa da violação de segredos consagrados de terceiros. Seria, de qualquer forma, uma discussão saudável: deveria ou não tê-lo feito?
Ao que se sabe não é isto que se vai passar. O hacker passou de violador a colaborador da Polícia Judiciária e até um alto magistrado do Ministério Público defendeu que fossem reduzidas as medidas de coação a que estava sujeito. Afinal, estava a ajudar e tinha descodificado informações até aí guardadas de forma que a polícia não conseguia desencriptar. Suspeita-se que a sua coroa de glória tenha sido destruir o império de Isabel dos Santos, um feito bem mais aplaudido do que ter arranjado problemas fiscais a José Mourinho ou a Cristiano Ronaldo, como se suspeita. Se tudo se aconteceu como se pensa, ainda bem que as informações chegaram ao conhecimento público.
Porém, não se misture denuncia com obtenção de provas judiciais. Mais uma vez, não se confunda opinião pública com sentenças judiciais.
Nasce com este caso uma enorme perplexidade: será que a Justiça se prepara para usar informação ilicitamente obtida? Aberta esta porta, dados recolhidos após tortura também poderão valer se evitarem crimes hediondos? E para pequenos crimes, apenas de aceitam uns tabefes?
Ou será que a Polícia quis abrir os discos apenas porque sim e vai ignorar o que lá está? Ou, pelo menos, terá de obter as provas por outra via? E, se assim, for, que impede a policia de encontrar mecanismos para que hackers façam o trabalho sujo e consigam resultados que o respeito pelos Diretos e pela lei tornam inalcançáveis? Para onde vai o Estado de Direito? Tanta preocupação com a inversão do ónus da prova e tamanhas críticas à delação premiada parecem mera hipocrisia se comparadas com o silêncio sobre esta colaboração.
Também é possível que tudo esteja a correr na maior das lisuras e legalidades, mas então, façam a vossa obrigação, expliquem bem. Polícias e magistrados também têm de prestar contas.
Os fins justificarem os meios é princípio que está na origem das maiores atrocidades das civilizações. Nunca deram bom resultado. E por isso era bom que não faltassem meios ao sistema judicial para explicar, clarinho, clarinho, o que anda a fazer.
A democracia impõe.
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