Crónica

A incoerência da ‘guerra’ contra as peles de animais

Na sequência do protesto da PETA, a Saint Laurent abandona o uso de pelo animal
Na sequência do protesto da PETA, a Saint Laurent abandona o uso de pelo animal
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O fim do pelo de animais nas marcas de luxo é mais uma adequação às tendências de consumo do que uma ideologia, escreve a jornalista Catarina Nunes na crónica ‘Sem Preço’

A incoerência da ‘guerra’ contra as peles de animais

Catarina Nunes

Jornalista

Recusamos cada vez mais comer carne, mas não excluímos os sapatos, as carteiras e os cintos em pele. É esta a lógica (ou falta dela) que leva cada vez mais marcas de luxo a banir o uso de pelo de animais, sem terem a mesma atitude em relação ao couro, à lã, à caxemira e às penas, sem falar nas menos comuns peles exóticas.

Quando a Gucci alinha com o cruelty-free, em 2017, os artigos com pelo de animais representam menos de 0,2% das vendas
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O mais recente movimento contra as peles verdadeiras é encabeçado pela segunda maior holding de luxo, a Kering, que acaba de anunciar que as suas duas marcas que ainda usavam este material (Saint Laurent e Brioni) vão deixar de o fazer a partir das coleções outono/inverno 2022. A decisão vem na sequência do que as restantes marcas de vestuário do grupo (Gucci, Balenciaga, Bottega Veneta e Alexander McQueen) já tinham feito nos últimos anos.

O argumento da Kering é que o luxo moderno deve ser ético e em sintonia com as questões sociais da sua época, sendo incompatível com o abate de animais apenas para a utilização das suas peles, sem ter como objetivo a alimentação humana. À decisão não terá sido alheia a manifestação da PETA, em março de 2021, contra o anúncio da Saint Laurent em que a modelo Kate Moss aparece a usar um casaco de raposa. A isto soma-se a controvérsia m torno das quintas de produção de animais (nomeadamente visons), incendiada durante a pandemia devido à possibilidade de serem focos de propagação do coronavírus de animais para humanos.

A Chanel abandona em 2018 o pelo de animais e as peles exóticas
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Há décadas que a People for the Ethical Treatment of Animals está em guerra contra a utilização de peles verdadeiras na indústria da moda, com os ataques mais centrados no pelo do que no couro. Apesar de os mais otimistas poderem considerar que o importante é começar por alguma parte, a inconsistência começa do lado dos opositores à crueldade animal. A confusão ainda é maior quando a PETA deixa clara a sua posição sobre esta matéria, defendendo, na sua página na Internet, que a produção de couro é tão violenta, dolorosa e mortal para os animais como o comércio do seu pelo.

Esta linha de raciocínio é comum à Federação Francesa dos Ofícios da Pele (que curiosamente se encontra do lado oposto da barricada) em relação ao posicionamento da Kering. A federação dos produtores de peles declara em comunicado que “os profissionais franceses do sector denunciam uma evidente hipocrisia por parte de um grupo que possui, em França e no resto do mundo, curtumes de peles exóticas (crocodilo e cobra, etc) e utiliza, com todo o direito, todos os demais materiais naturais animais, como o couro e a lã”.

Billie Eilish aceita envergar um vestido Oscar de La Renta no Met Gala, com a condição de a marca abandonar o pelo de animais
JUSTIN LANE/EPA

A federação vai mais longe e exige que a Kering especifique as suas intenções quanto à autorização de outras matérias-primas animais nas marcas que integra para que o sector se prepare, considerando a exclusão do pelo de animais “um golpe de marketing”. A verdade é que nos últimos meses a questão tem vindo a atravessar momentos decisivos, não só com o aumento de marcas de luxo a banir este tipo de material. Também os principais retalhistas multimarca estão a recusar vender vestuário com pelo natural, nomeadamente nos Estados Unidos. Neiman Marcus e Saks Fifth Avenue são os mais recentes armazéns de luxo anti-peles, que se juntam ao Bloomingdale’s, Selfridges, Macy’s e Nordstrom que já tinham dado este passo, e às plataformas digitais Mytheresa e Net-a-Porter.

O Neiman Marcus é um dos mais recentes armazéns de luxo a recusar vender vestuário com pelo natural
Tom Hurst

Estes movimentos, porém, deixam um ‘elefante na sala’: as peles exóticas, lãs, caxemiras e principalmente o couro, que, na verdade é a matéria-prima animal que tem mais peso na indústria do luxo. Quando a Gucci anuncia, em outubro de 2017, ter alinhado com o cruelty-free, os artigos com pelo de animais tinham um peso de €10 milhões nas vendas, menos de 0,2% das receitas totais da marca, de acordo com os dados revelados na época. A percentagem é irrisória e indica a pouca expressão desta abolição e reforça os dados da International Fur Federation que indicam um declínio da indústria. Em 2019, o sector valia 22 mil milhões de dólares (€18,9 mil milhões) a nível mundial, menos 45% do que em 2015.

Nesta situação terá contribuído não só a maior consciência dos consumidores (nomeadamente as gerações mais jovens, determinantes no crescimento das vendas de luxo), que ganha tração com a pandemia. A Dinamarca, um dos maiores produtores mundiais de visons, decreta o abate de 15 milhões destes animais, na sequência de uma mutação do coronavírus, que infeta 214 pessoas em novembro de 2020. Estados Unidos, Holanda e Espanha fazem igualmente este caminho, enquanto Israel anuncia, em junho de 2021,a proibição das peles (com exceções religiosas) e o Reino Unido estuda esta hipótese.

Na Semana de Alta-Costura de Paris, a Balenciaga apresenta um blusão com fios de seda bordados de forma a criar a ilusão de pelo de raposa
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Com o cerco a apertar, as marcas de luxo apostam em alternativas artificiais que não excluam completamente o efeito (estético, térmico e de textura) das peles naturais, destinadas a alimentar a perceção de luxo supremo que as envolve. Em julho de 2021, a Balenciaga apresenta na Semana de Alta-Costura de Paris, por exemplo, um blusão feito à base de fios de seda bordados de forma a criar a ilusão do pelo de raposa e um casaco comprido com a mesma técnica, mas que replica o efeito das penas naturais.

Estas criações são também uma forma de não ‘perder o barco’ das tendências, que levam à explosão de novas marcas de luxo que já nascem anti-peles e a crescente consciência ética dos consumidores. Isto, porém, deixa outro ‘elefante na sala’: a produção de alternativas sintéticas às peles naturais tem igualmente um impacto ambiental negativo. Algumas são derivadas do petróleo, outras exigem tingimentos que poluem o ar e a água, por exemplo. O caminho que a indústria está a seguir indica que estes aspetos poderão vir a ser o próximo ‘cavalo de batalha’ de associações ambientalistas. As grandes marcas de luxo estão a investir cada vez mais em soluções sintéticas ou vegan, sendo que as alternativas vegetais irão levar, inevitavelmente, a uma exploração intensiva da natureza.

A clássica mala de mão Victoria é o primeiro produto da Hermès a assumir a nova pele feita de cogumelos
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A Hermès, que tem na sua génese os artigos em couro, apresenta em março deste ano uma pele produzida a partir de cogumelos, que promete ter a mesma resistência e durabilidade do couro de vaca. A clássica mala de mão Victoria é o primeiro produto da Hermès a assumir este novo material, mantendo, no entanto, as alças em pele de bezerro… Ainda não é claro se esta abordagem será extensível aos restantes artigos da marca e se os clientes continuarão disponíveis para pagar o mesmo preço por couro falso. Será na interseção das variáveis de todas as partes (consumidores, indústria e proteção dos animais e do ambiente) que se desenhará o futuro. Mais ou menos coerente.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: CNunes@expresso.impresa.pt

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