Sabe o que são NFT? Cruzam arte e luxo… e valem milhões

Na crónica ‘Sem Preço’ desta semana, a jornalista Catarina Nunes analisa como o futuro das marcas de luxo pode (ou deve) passar pela criação de ativos digitais únicos
Na crónica ‘Sem Preço’ desta semana, a jornalista Catarina Nunes analisa como o futuro das marcas de luxo pode (ou deve) passar pela criação de ativos digitais únicos
Jornalista
Confesso que até há duas semanas não fazia a menor ideia do que é um NFT e, provavelmente, não serei a única. A recente avalanche de tokens não-fungíveis e dos seus decorrentes, na arte e na moda de luxo, revelam um território pouco ou nada conhecido junto da generalidade da população, mas que é um fenómeno popularizado entre as gerações mais jovens. E está a valer milhões.
O alerta é dado a 11 de março, quando a Christie’s anuncia a venda do NFT de uma colagem digital do artista Beeple por 69,4 milhões de dólares (€58,6 milhões), alegadamente o valor mais alto alguma vez alcançado por uma obra de arte não-física (neste caso trata-se de um ficheiro jpeg). É também a terceira mais cara vendida por um artista vivo. Alguns dias depois, a Gucci revela os seus primeiros ténis (ou sapatilhas) digitais que, não sendo exatamente um NFT, indiciam que a marca está a alargar a presença no universo digital, onde se posiciona há alguns anos com a criação de peles para avatares de jogos virtuais.
No início do mês, já a RTFKT Studio tinha faturado cerca de 3 milhões de dólares (€2,4), com a venda de cerca de 600 pares de ténis virtuais, de uma edição com três modelos diferentes. O estúdio norte-americano de realidade virtual, que se posiciona como a primeira marca de NTFs de luxo, cria os ditos ténis em colaboração com o artista Fewocious, que com apenas 18 anos de idade é uma estrela planetária na arte digital. Estes são alguns de vários exemplos recentes que revelam um boom (ou uma ‘bolha’) de NFTs em torno da arte e da moda. Por cá, Vhils é um dos pioneiros a posicionar-se, ao disponibilizar, desde esta semana, um vídeo NFT no Super Rare, uma plataforma que reúne e comercializa arte digital de edição única.
Antes que desista de continuar a ler esta crónica, por tudo isto lhe parecer bastante bizarro e ininteligível, vamos à base da história: o que é um NFT? O acrónimo de Non-Fungible Token traduz um ativo digital único e infungível, gerado a partir da tecnologia blockchain, e serve para dar uma identidade singular a um item específico, conferindo-lhe um selo oficial de raridade e escassez. Grosso modo, é um derivado das criptomoedas mas ao contrário da Bitcoin, por exemplo, não é intercambiável e tem um cariz colecionável e de utilização em mundos virtuais ou em moldura digitais. Só em 2020, o mercado de NFTs cresce 299%, para 250 milhões de dólares (€212 milhões), segundo um estudo do Nonfungible.com/L’Atelier BNP Paribas, e estão dados os sinais que a expansão continua.
A explosão de transações milionárias e de criações artísticas em torno dos NFTs explica-se, em parte, com a crescente procura de diversificação da carteira de ativos por parte de investidores em criptomoedas. O confinamento, por outro lado, vê nascer novos criadores ‘caseiros’ (como Fewocious, que faz o seu primeiro NFT em 2020), aumentado exponencialmente a quantidade e interesse em torno de ativos desta natureza. O detalhe que justifica os preços estratosféricos e a atenção de compradores prende-se com as características intrínsecas dos NFTs, que são também o que os torna relevantes para as marcas de luxo.
A escassez e a exclusividade estão na base da construção do conceito de luxo, que estes ativos virtuais cumprem, ao apresentarem-se com uma identidade digital única que comprova estes atributos através do selo blockchain, que através de um algoritmo garante que não é copiável. É eterno e intemporal, sendo passível de gerar um ritual de passagem de geração em geração, como acontece com os relógios e com as joias. A garantia da origem, por outro lado, salvaguarda o problema da contrafação, uma vez que o NFT tem um passaporte digital que rastreia o item desde a criação, acompanhando as suas eventuais mudanças de proprietário. Aliás, este é um documento digital que já é comum a algumas marcas de luxo, através do Arianee, um sistema de identidade digital desenvolvido especificamente para produtos de marcas desta natureza.
Se as afinidades são mais ou menos evidentes, o mesmo não se pode dizer sobre o caminho que os NFTs vão seguir no mercado de luxo. O interesse é crescente, mas resume-se mais a testes e experiências que capitalizam a notoriedade dos NFTs no ciberespaço e nas redes sociais, não sendo propriamente uma estratégia assumida claramente. Fica-se por criações de peças digitais acessíveis nas aplicações das marcas, através de realidade aumentada, que funcionam como um filtro (como os recém-lançados Gucci Virtual 25), que permite ao utilizador experimentar virtualmente como é que ficaria com os ténis calçados. Neste momento deve estar a questionar-se quem é que tem interesse em comprar algo que só está disponível no telemóvel, mais ainda pagando um preço de luxo.
Neste aspeto, a Gucci parece contradizer a lógica de mercado, ao pôr à venda os Virtual 25 por 12 dólares (€10), quando os seus ténis reais têm uma média de preços acima dos €500. Só que não. Desta forma chega aos adolescentes e jovens adultos que ainda não têm capacidade financeira, mas ambicionam o estatuto que uma marca de luxo confere, e alarga a audiência potencial de futuros novos compradores. Além de deixar em aberto uma possível materialização do dito modelo, vendido com preços alinhados com os que pratica no mundo físico. Aliás, a criação de NFTs com versões físicas, e vice-versa, permite fazer a tão desejada ponte entre o offline e o online. O foco apenas no virtual, porém, não é disparatado. A pandemia e o consequente confinamento normalizam a digitalização dos estilos de vida, em particular dos mais jovens, segmento que nos últimos anos é responsável pelo crescimento das vendas das marcas de luxo.
São consumidores ávidos de tudo o que reflita as suas personalidades na Internet, em particular nos jogos de vídeo e nas redes sociais, que é o habitat natural dos NFTs. Mais: estes ativos com nome estranho são compatíveis com vários mundos virtuais blockchain, como o Decentraland (compra de terrenos virtuais) ou The Dematerialised (roupa digital), por exemplo. Outro aspeto relevante é que qualquer pessoa pode criar e transacionar todo o tipo de ativos digitais não-fungíveis, desde peças de arte, produtos, serviços, vídeos, músicas, hologramas e até tweets. Para isto basta ter uma ‘carteira digital’ e abrir uma conta numa das várias plataformas existentes, como a Rarible (uma das maiores), a OpenSea (o ‘eBay de NFTs’) ou a Nifty Gateway (arte e itens colecionáveis), entre outras.
Para as marcas de luxo, isto significa que qualquer utilizador pode pegar nos seus produtos ou logotipos e fazer um NFT, como o Gucci Ghost, criado em 2016 por Trevor Andrew na Nifthy Gateway. A obra deste artista multidisciplinar (que utiliza o logotipo da Gucci) nasce à revelia da marca italiana. Mas, em vez de o processar, a Gucci acaba por integrar o dito fantasma na criação de uma coleção de roupa, quando Alessandro Michele, diretor criativo da Gucci, tem conhecimento da existência deste NFT. Esta situação indicia que a indústria terá de repensar o conceito de contrafação, quando no mundo físico já é evidente que alguns artigos intervencionados por artistas têm uma maior valorização do que os originais. É o caso das Birkinstock criadas em fevereiro pelo coletivo de artistas MSCFH, a partir das sandálias Birkenstock e com a pele das carteiras Birkin da Hermès.
O luxo e a arte têm um histórico comum e colaborativo, que tem acontecido por iniciativa das marcas, as mesmas que investem milhões no controlo da contrafação e de apropriações indevidas do seu legado, e em processos em tribunal quando isto está em causa. Agora, os NFTs estão a mostrar um caminho que transforma um problema numa oportunidade, ao mesmo tempo que dá origem a uma nova fonte de receitas. É que, o criador de um NFT pode receber uma percentagem do valor da sua obra cada vez que esta é revendida, ao contrário dos artigos físicos, em que a marca fatura apenas a venda inicial. Ou seja, não recebe rigorosamente nada quando a joia, relógio ou carteira, é revendida em leilões por um valor superior ao preço de origem, como é comum na indústria. Analistas do sector têm estado a projetar que, nos próximos cinco a 10 anos, grande parte das receitas das marcas de luxo venha de produtos digitais...
A oportunidade vem com riscos. O mais óbvio é que os NFTs passem em breve por uma fase de queda de valorização para depois voltarem a subir (não se sabe quando), como aconteceu com outras criptomoedas. É impossível prever o futuro, mais ainda quando o que está em causa é uma representação digital que está longe de ser unanimemente entendida e reconhecida. Mas as plataformas de Internet descentralizada aumentam e são cada vez mais compreendidas e de fácil acesso. Certo é que as primeiras marcas de luxo a posicionar-se ganharão notoriedade junto das gerações mais jovens, que exigem não só raridade e estatuto, como interatividade e cocriação. Os sinais estão dados. O que é que falta? Confiar no potencial que se está a abrir e criar estruturas que suportem NFTs. Veremos que marcas se vão render (ou não) a este ecossistema.
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