Mark Zuckerberg, fundador do Facebook, a empresa que veio dar origem à Meta, da qual é hoje executivo e que é a casa-mãe também de Facebook Messenger, Instagram, Whatsapp e Threads, veio anunciar através de um vídeo no Instagram que vai trabalhar de perto com a administração Trump e que as parcerias que tinha com plataformas de verificação de factos vão acabar. Diz que o faz “em prol da liberdade de expressão”, e di-lo menos de um mês depois de ter feito uma doação de um milhão de dólares ao republicano.
A “liberdade de expressão” tem as costas largas, mas o que Mark Zuckerberg defende não é liberdade de expressão. É outra coisa. Para simplificação dos termos, chamemos-lhe liberdade de desinformação, uma espécie de verdade por voto popular. Propõe trocar as ferramentas de fact-checking, ou verificação dos factos, por notas da comunidade. Notas essas que surgirão à margem das publicações ali presentes, e que serão escritas e votadas por utilizadores.
Assim, o que a ‘comunidade’ entender que é verdade, passa a ser aceite e demonstrado como tal, ainda que organizações e meios independentes pudessem provar, com base em factos e dados, que é mentira.
É do entendimento do criador do Facebook que as ferramentas de verificação de factos que tem tido em vigor são “tendenciosas”. É normal: para quem faz do seu ganha-pão a monetização da mentira, da deturpação e da desinformação; a afirmação da verdade e o trabalho jornalístico honesto podem mesmo ser vistos como malévolos. Não nos esqueçamos: a Meta ganha mais dinheiro quanto mais tempo os utilizadores passarem nas suas plataformas, mesmo que seja a discutirem umas com as outras ou a verem vídeos falsos e manipulados em loop (hoje ainda mais fáceis de criar com a IA generativa).
Donald Trump, quando questionado pelos jornalistas, aprovou a decisão do bilionário, e manifestou contentamento, acreditando estas mudanças podem ter sido provocadas pelas ameaças que fez a Zuckerberg.
O presidente eleito dos Estados Unidos avisou no livro que publicou antes da campanha para as eleições de 2024 que estava a observar o criador do Facebook “de perto”: “Se ele fizer algo ilegal desta vez, ele passará o resto da vida na prisão”. Perante a mais que possível ‘weaponização’ do Departamento de Justiça por parte da Administração Trump, o todo-poderoso da Meta ajoelhou e evitou consequências de maior. Money talks.
Na sua renovada versão, Zuckerberg diz que quer trabalhar com o governo norte-americano para enfrentar países da União Europeia e América Latina que fazem “censura”. Na verdade, que têm intervindo minimamente para proteger os direitos dos cidadãos online.
O programador e empresário anunciou uma “flexibilização” das regras de moderação e conteúdos da Meta e explicou: para isso vai ver-se livre de “um monte de restrições em tópicos como imigração ou questões de género” que, diz, “estão desajustados do discurso dominante”. Sejamos claros: o que Mark Zuckerberg promete é liberalizar a utilização destas plataformas para propagação e disseminação de discurso de ódio sem quaisquer consequências. Esta não é uma derrota da cultura ‘woke’ ou do identitarismo, é uma derrota de cada um dos cidadãos que, por algum motivo, é menos privilegiado.
No fundo, se o CEO acha que já não está na moda, já não é “dominante”, defender que pessoas negras ou gays merecem tanto direito ao respeito como todas as outras, o melhor é flexibilizar as regras para que seja possível que qualquer perfil falso possa relembrá-las do seu estatuto inferior. De preferência com recurso a uma das mais eficazes ferramentas para o fazer: o insulto.
E, ao mesmo tempo que acaba com qualquer controlo sobre a veracidade ou a legalidade do discurso, Mark Zuckerberg faz mais um anúncio: depois de anos em que limitou o conteúdo político nas plataformas, anuncia que vai promovê-lo de novo. “Durante algum tempo, a comunidade pediu para ver menos conteúdos políticos porque estava a fazer com que as pessoas fiquem stressadas, então parámos de recomendar este tipo de publicações”, explica. E de seguida anuncia: agora estamos numa “nova era”.
Durante algum tempo, e após o escândalo da Cambridge Analytica, o Facebook ficou ‘escaldado’ com política e preferiu modificar o algoritmo de modo a ocultar mais esse tipo de publicações, mas tudo mudou e chegou a tal nova era: agora tem um governo nos Estados Unidos que beneficia de esquemas como o da Cambridge Analytica, e entende que pode voltar a ganhar dinheiro (e muito rendimento publicitário) com os conteúdos políticos, sem correr qualquer risco de que as instâncias públicas ou regulatórias o limitem. Antes pelo contrário.
Não se negoceia com terroristas
No nosso país, e na União Europeia em termos gerais, nenhuma empresa de media ou comunicação pode dar palco, sem consequências mais ou menos graves, à disseminação consecutiva do discurso de ódio, à mentira e à fraude. Se o fizer arrisca mesmo a perder a licença para manter a sua atividade – e bem.
A liberdade de expressão permite, efetivamente, que as pessoas digam o que entendem. Mas, e é infantil negá-lo, a liberdade presume responsabilidade. Como diz o velho ditado, “quem diz o que quer, ouve o que não quer”. E pode mesmo ter de ouvir uma sentença do tribunal.
Se assim é em todos os ramos de atividade, e em particular no setor dos media, que é aquele em que as redes sociais operam e onde têm canibalizado os concorrentes agressivamente, porque é que estas plataformas gigantes continuam a gozar de quase total inimputabilidade enquanto colecionam uma quantidade de dados e informação sobre os seus utilizadores que nenhuma outra organização, ou mesmo Estado, detém?
Que, nos Estados Unidos, perante a chantagem de Donald Trump e o benefício financeiro que daí pode obter, Mark Zuckerberg se ofereça para ser facilitador de uma deriva antidemocrática, é preocupante, mas diz respeito sobretudo aos Estados Unidos. Que todos nós, nos países desenvolvidos, assistamos a isto passivamente já é problema nosso.
A União Europeia, que assistiu ainda recentemente à manipulação, pela Rússia, de atos eleitorais em países como a Roménia, a Moldova ou a Geórgia, com recurso a publicações pagas e dirigidas nas redes sociais, tem de obrigar estas plataformas (as da Meta, mas também TikTok, X, Discord ou Telegram) a terem políticas de moderação de conteúdos em conformidade com a legislação. Caso estas redes sociais não o façam, a consequência é simples: será limitada a sua operação nestes territórios e, com isso, perdem uma fatia importante da sua receita. Money talks.
Recentemente, o Brasil mostrou de forma clara como dobrar Elon Musk, ao vedar-lhe o seu mercado gigantesco de mais de 200 milhões de pessoas enquanto não respeitasse a lei brasileira. E este, depois da habitual e repetitiva vitimização, acabou mesmo por fazê-lo. Não se negoceia com terroristas, mesmo que o terrorismo que fazem seja em plataformas virtuais e com o apoio de fortunas de biliões de dólares. Faz-se cumprir a lei. Na União Europeia, o recentemente aprovado Digital Services Act abre a porta a esta responsabilização, mas falta efetivá-lo de forma consequente.
Fazer cumprir a lei não é censura, nem um ataque à liberdade de expressão. Pelo contrário, protege-a: a liberdade de discussão e opinião é mais forte quando baseada em factos reais e quando feita de forma leal e respeitosa. Por mais voltas que nos tentem dar, lutar por isso é inteiramente legítimo: a verdade não é maleável, e o respeito pela pessoa humana não pode ser opcional.