Ler cartas de amor
Até 1974, muitas meninas não iam à escola ou iam desistindo ao longo dos primeiros anos. Aos meninos reconhecia-se, na maior parte dos casos, a importância de, pelo menos, saber ler, escrever e fazer contas
Arquiteta, membro do Grupo de Contacto do LIVRE
Até 1974, muitas meninas não iam à escola ou iam desistindo ao longo dos primeiros anos. Aos meninos reconhecia-se, na maior parte dos casos, a importância de, pelo menos, saber ler, escrever e fazer contas
A minha avó Rosa tem 95 anos. Nasceu numa aldeia da raia beirã e aos 12 anos era a pessoa da família responsável por cozer o pão que todos comiam. O meu bisavô tinha especial afeição pela filha mais nova, mas isso não chegou para que ela tivesse os mesmos direitos que o irmão.
A escola primária, aprender a ler, a escrever e a fazer contas, era uma capacitação vista com maus olhos numa sociedade que circunscrevia a mulher às funções tradicionais da casa e da família. Longe da democratização do telefone e do surgimento da internet, a carta era o principal meio de comunicação.
Por um lado, não aprendendo a escrever, as meninas e as mulheres dificilmente encontravam trabalho fora da domesticidade, sua ou de outros, reduzindo assim as possibilidades de serem independentes e de fugirem aos moldes rígidos de ser mulher. Por outro lado, essa incapacidade impossibilitava a privacidade na troca de mensagens pessoais, como as cartas de amor, e assim ficava comprometida a liberdade nas escolhas que hoje tomamos como garantidas, em relações românticas sãs.
Nunca se esperou da minha avó, e de tantas outras avós, mulheres como nós, que aprendessem sobre o mundo para lá da sua aldeia e da sua região. O seu lugar era ali. Como tal, desde cedo as meninas e os meninos tinham percursos diferentes. Até 1974, muitas meninas não iam à escola ou iam desistindo ao longo dos primeiros anos. Aos meninos reconhecia-se, na maior parte dos casos, a importância de, pelo menos, saber ler, escrever e fazer contas. Para serem os chefes da família, assumirem publicamente responsabilidades comunitárias, sociais e políticas, além do trabalho fora de casa, as horas dos meninos “perdidas” na escola eram encaradas como compensatórias ainda que em complemento aos afazeres do campo.
Esse país fechado e repressivo em que a minha avó cresceu nas décadas de 30 e 40, ao qual alguns querem voltar para decidir o nosso presente e projetar o futuro coletivo, era um lugar onde as meninas eram proibidas de ir à escola porque o conhecimento era visto como atentatório da ordem pública e da forma como a sociedade e as famílias se organizavam. Mesmo que isso significasse a perda de aprendizagens importantes para o bem-estar das suas famílias.
As avós são muito importantes, as nossas e todas as outras. Têm uma sabedoria que também é feita do muito tempo que viveram e que a história foi marcando entre momentos políticos distintos. No nosso país a maior parte das avós viveu em ditadura e rapidamente se recorda da fragilidade social e económica em que se podiam encontrar antes do 25 de abril, quando após uma vida inteira de trabalho na sua casa, ou fora mas de registo informal, como existe ainda hoje maioritariamente entre mulheres, se deparavam com total desproteção social nos momentos de maior vulnerabilidade, viuvez, velhice e doença.
A minha avó, afortunadamente, teve uma vida muito feliz. Foi e é, apesar de lhe terem roubado as cartas de amor, uma pessoa muito amada. Mas, infelizmente, todos conhecemos várias mulheres que apesar de inteligentes, dedicadas e formidavelmente capazes na sua vida profissional e pessoal, vivem angustiadas por não terem estudado mais, por não terem valorizado mais a sua realização profissional. Em comum, estas mulheres queriam ter oportunidades iguais, uma expectativa coletiva pela sua superação profissional, a valorização do seu intelecto, da sua autonomia como fatores de bem-estar social, familiar e coletivo. Queriam também não se esgotar no papel reprodutor, nas tarefas domésticas repetitivas e invisíveis a quem não as faz. Queriam tempo livre para, eventualmente, procurarem outras formas de existir, de ter voz e uma participação pública.
A democracia é o único sistema político de cuidado mútuo, no qual cuidamos dos outros e de nós próprios através das práticas democráticas, das decisões dos órgãos políticos, da lei e da separação de poderes. A independência das meninas, raparigas e mulheres é uma conquista democrática que mantemos a cada palavra, a cada gesto e a cada decisão. Todas temos direito à escola e ao estudo, ao respeito pelo nosso trabalho e valor profissional, a decidir sobre o nosso corpo e sobre a nossa vida pessoal, a procurar a felicidade e, igualmente, nestes tempos que alguns querem obscurecer, ao nosso lugar de cidadania e político. A minha avó não quer outra coisa para as meninas que no começo do século XXII poderão, ou não, ser avós, mas que puderam ler cartas de amor.
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