Musk e Zuckerberg: dois bons samaritanos?
Se quiserem fazer negócio do lado de cá do Atlântico, X e Meta vão ter de dançar ao ritmo de outra música
Constitucionalista, professor da Escola de Lisboa da Faculdade de Direito da Universidade Católica
Se quiserem fazer negócio do lado de cá do Atlântico, X e Meta vão ter de dançar ao ritmo de outra música
Para os oligarcas das redes sociais, como Musk e Zuckerberg, liberdade de expressão é o que lhes permite ganhar dinheiro. Quanto mais, mais. Pelo contrário, moderação de conteúdos é o que os faz perder dinheiro. Quanto mais, menos. É por isso que, sempre que lhes convém, a confundem deliberadamente com censura e se livram dela quando o ambiente é propício.
Ainda que a invoquem mil vezes, estão-se rigorosamente nas tintas para a liberdade de expressão dos utilizadores das redes sociais que governam. Zuckerberg é pior do que Musk. Este, pelo menos, sempre disse ao que vinha, mesmo antes de comprar o Twitter por 44 mil milhões de dólares. Zuckerberg é um lobo com pele de cordeiro, porque, quando os ventos sopravam noutra direção, fazia não apenas moderação de conteúdos – com recurso a uma extensa rede de fact-checkers –, mas também policiamento de linguagem segundo padrões woke.
Estava a Internet a dar os primeiros passos, em 1996, quando o Congresso americano decidiu regular as plataformas digitais que então despontavam e estabeleceu uma regra legal que ainda hoje está em vigor: as plataformas não devem ser tratadas como autoras nem como editoras dos conteúdos produzidos e colocados em circulação pelos utilizadores. Se esses conteúdos forem ofensivos, ilegais ou causarem prejuízos a terceiros, as plataformas não podem ser responsabilizadas por isso. Apesar de serem elas que os disseminam, a responsabilidade permanece exclusivamente na esfera dos utilizadores.
Esta regra de isenção de responsabilidade ficou conhecida como a “cláusula do bom samaritano”, porque se acreditava ao tempo que quem ajudava os cidadãos a difundir as suas ideias e criações (ou a promover os seus negócios) nunca deveria ser penalizado por esse ato de generosidade.
Várias metáforas foram usadas para explicar o sentido desta cláusula. Por muito má que seja a notícia, não devemos descarregar a nossa ira no mensageiro. Se uma biblioteca tem nas suas estantes um livro racista, a nossa crítica não deve voltar-se contra o bibliotecário, mas sim contra o autor.
Por outro lado, esta cláusula – cujo texto jurídico se esgota em apenas 26 palavras – ficou também conhecida, por conta do título de um livro famoso, como “as 26 palavras que criaram a Internet”. Não a rede enquanto infraestrutura tecnológica, mas a Internet enquanto realidade sociológica e económica, omnipresente nas nossas vidas. Sem essas 26 palavrinhas mágicas, alinhadas pelo legislador americano, as plataformas digitais nunca se teriam desenvolvido à velocidade com que se desenvolveram e atingido a escala estratosférica que têm no presente.
Acontece que, em 1996, confiava-se de olhos fechados na velha teoria do “livre mercado das ideias”, segundo a qual as más ideias devem poder ser difundidas sem limitações porque, havendo condições para um debate aberto, as boas ideias vão acabar sempre por prevalecer. O drama é que, em 2025, após largos anos de experiência, em que as redes sociais se transformaram no principal espaço público de acesso à informação e de debate político, sabemos que as ideias com mais sucesso não são necessariamente as mais sólidas, fundamentadas e equilibradas. Bem pelo contrário, uma teoria da conspiração bem urdida suscita mais interesse e envolvimento do que um artigo de um prémio Nobel da economia.
A União Europeia, que durante muitos anos alinhou pelo paradigma regulatório americano, começou a afastar-se dele em 2016, com o Regulamento Geral de Proteção de Dados, e aprovou em 2022 o Regulamento dos Serviços Digitais, que pela primeira vez submete as redes sociais a um vasto conjunto de obrigações de diligência e transparência. Se quiserem fazer negócio do lado de cá do Atlântico, X e Meta têm de dançar ao ritmo de outra música.
Há muito que o Congresso americano também já se apercebeu que personagens como Musk e Zuckerberg não são propriamente bons samaritanos, que de forma generosa abrem as portas das suas redes à liberdade de expressão a milhões de pessoas. Mas aí a linguagem do poder (e do lobby) falou sempre mais alto. Os EUA têm nas GAFAM (Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft) – empresas que inventaram um novo modelo económico, chamado “capitalismo de vigilância” – uma das armas mais poderosas na preparação da mãe de todas as batalhas: a guerra com a China pelo domínio da economia digital à escala mundial.
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