Opinião

A “cooperação estratégica” no micro-ondas de Belém

A “cooperação estratégica” no micro-ondas de Belém

Jorge Pereira da Silva

Constitucionalista, professor da Escola de Lisboa da Faculdade de Direito da Universidade Católica

O conceito de cooperação estratégica, introduzido por Cavaco Silva e agora requentado por Marcelo Rebelo de Sousa, não passa de um artifício retórico, vazio de substância e sem impacto real na governação

A “cooperação estratégica” está para o sistema de governo português como as espumas gourmet estão para a gastronomia. Dão um certo colorido ao prato, mas desaparecem no garfo antes de este chegar à boca. Seguramente, ninguém se consegue alimentar daquilo.

Por estranho que possa parecer, o conceito de cooperação estratégica foi inventado por um pragmático, de nome Aníbal Cavaco Silva, quando se candidatou e foi eleito Presidente da República nos idos de 2006. Depois de dez anos de Jorge Sampaio como inquilino de Belém, era necessário encontrar uma expressão para redefinir a função presidencial para os anos vindouros. À falta de melhor inspiração, arranjou-se a sobredita cooperação estratégica. Lá está, tal como nos restaurantes da moda, qualquer chef que se tome a sério não pode limitar-se a servir boa comida: chame-se tasca, cantina ou mercearia, o seu restaurante tem de ter um conceito.

Por falar nisso: “já conhecem o nosso conceito?” Pergunta sacramental, à qual respondemos “ainda não” – num misto de vergonha e resignação. Vergonha, pela nossa falta de cultura gastronómica. Resignação porque, em bom rigor, não fazíamos questão de conhecer o conceito ao pormenor, mas é certo e sabido que vamos ter de ouvir a explicação até ao fim. Venha ela, pois...

Foi justamente o que Cavaco Silva fez: explicou-nos o significado da cooperação estratégica detalhadamente no seu primeiro livro de discursos, denominado “Roteiros I”, INCM, 2007, a páginas 14 a 16 do respetivo preâmbulo. Resumidamente, o cardápio é composto por dois pratos principais. Primeiro, o Presidente está disponível para ajudar o Governo no que este estiver a fazer bem – e, claro, a partilhar os respetivos louros. Segundo, não aceita ser corresponsabilizado pelas asneiras que este fizer, à margem do sábio aconselhamento presidencial. Aí o Governo corre por sua conta a risco. Considerando que o primeiro-ministro de então se chamava José Sócrates, esta segunda parte do menu afigurava-se bastante avisada. À laia de sobremesa, o Executivo deve estar ciente de que os poderes constitucionais do Presidente são sempre irrenunciáveis.

Sem ser psicólogo, arriscaria uma análise freudiana: o que Cavaco Silva não queria era passar o seu consulado à sombra da fórmula “Presidente de todos os portugueses”, herdada de Ramalho Eanes ou, menos ainda, da ideia de “magistratura de influência”, cunhada pelo seu arqui-adversário Mário Soares. Mesmo não sendo um político, Cavaco Silva terá cedido à tentação de deixar a sua marca na histórica do semipresidencialismo pátrio. Enfim, já se sabe que a vaidade é o pecado preferido do diabo!

Chegados a 2025, estava o povo português a descansar desta guerra conceptual (não entre Chefs de restaurantes concorrentes, mas entre sucessivos Chefes de Estado), e eis que, ao nono ano do seu mandato, Marcelo Rebelo de Sousa – para todos o “Presidente dos afetos” e das selfies –, decide pôr a velha cooperação estratégica a descongelar no micro-ondas de Belém e servi-la, assim requentada, a Luís Montenegro.

Não sabemos se o atual primeiro-ministro é grande fã de espumas e outros especialidades gourmet, mas claramente o cardápio presidencial não lhe farejou. Francamente, o que poderia o Presidente esperar? Qualquer Tuga que se preze prefere de longe, já não digo favas com chouriço, mas um arrozinho de pato acabado de sair do forno, a iguarias gourmet aquecidas no micro-ondas!

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