Opinião

Resposta a “O vegetarianismo é só um modo de vida, não é o 'ambientalismo'”

Resposta a “O vegetarianismo é só um modo de vida, não é o 'ambientalismo'”

Joana Oliveira

Direção, ProVeg Portugal

Em 2023, 51% dos consumidores europeus diminuíram o seu consumo anual de carne. Em Portugal, aproximadamente 910 mil pessoas privilegiam o consumo de alimentos de origem vegetal, o que representa cerca de 10,4% da população adulta

Henrique Raposo, cronista do Expresso, escreveu recentemente um artigo de opinião designado de “O vegetarianismo é só um modo de vida, não é o 'ambientalismo'”. O presente texto é uma resposta ao mesmo.

No artigo alvo desta análise, o cronista começa por associar o vegetarianismo a uma ideologia radical, que diz ser ilegítima e muitas vezes contrária ao próprio meio ambiente. Segundo o autor, não passa, muitas vezes, de um “animalismo mal disfarçado que é contrário ao próprio ciclo da vida e da natureza”, referindo mesmo que “o vegetarianismo é contranatura”. Acrescenta que a larga maioria de pessoas que tenta ser vegetariana acaba por desistir, que sente um cansaço profundo, mostrando confiança que tal deriva da ausência de proteína animal e que o corpo vive num défice de vários nutrientes, como a vitamina B12. Podemos analisar o elemento 'contranatura' destacado pelo autor e compreender como este se conecta aos demais aspectos por ele abordados.

Comecemos por referir que a pesquisa empírica mostra que, quando os indivíduos são informados sobre o sofrimento enfrentado pelos animais na indústria, começam a reavaliar a carne, ou seja, classificam-na como menos saborosa, consideram que tem um cheiro menos convidativo e avaliam a sua aparência como menos atraente. A sua disposição para comer e pagar pela carne diminui. Por sua vez, outro estudo conclui que os trabalhadores de matadouros têm uma maior taxa de prevalência de problemas de saúde mental e, em particular, de depressão e ansiedade.

Passando agora para a questão da adequação nutricional, a ingestão proteica, em Portugal, é cerca de 4 vezes superior ao recomendado, sendo que os principais contribuidores para a ingestão de proteína são a carne e os produtos lácteos, observando-se que o consumo nacional do grupo “Carne, pescado e ovos” encontra-se acima dos valores recomendados (17% vs 5%).

Assim, perante a análise psicológica e ética descrita e a realidade de consumo no nosso país, concordo que podemos refletir se a sociedade está a atuar de forma contranatura às suas necessidades e características biológicas, valendo igualmente a pena referir que o consumo regular de carne vermelha não processada, carne processada e carne de aves está associado a um maior risco de várias condições adversas de saúde, como diabetes. Por outro lado, uma alimentação de base vegetal tem estado associada a um menor risco de mortalidade e de ocorrência de doenças crónicas.

No que toca à vitamina B12, é importante perceber que esta é sintetizada por microrganismos, bactérias, fungos e algas e nem plantas nem animais são capazes de sintetizá-la. Os animais obtêm vitamina B12 pela alimentação, através de rações fortificadas, ou pela produção da microbiota intestinal. Percebendo o conceito, naturalmente se pode concluir que aqueles que não consomem carne potencialmente precisam de suplementação de vitamina B12. Mas a deficiência de vitamina B12 não é uma condição exclusiva de pessoas que seguem uma alimentação vegetariana. Por exemplo, nos países ocidentais, a prevalência do défice aumenta com a idade, independentemente do padrão alimentar. Estima-se que, nos idosos, o défice seja de 10–15%, aumentando para os 23–35% na população com mais de 80 anos.

O autor refere que o mercado vegan estagnou, mas os dados a nível nacional e europeu mostram o contrário. As vendas do mercado de produtos de base vegetal evidenciam que a procura do consumidor português por estes alimentos está a crescer, tendo as respetivas vendas aumentado 20% entre 2020 e 2022, totalizando € 64,7 milhões. Acresce que, em 2023, 51% dos consumidores europeus diminuíram o seu consumo anual de carne. Em Portugal, aproximadamente 910 mil pessoas privilegiam o consumo de alimentos de origem vegetal, o que representa cerca de 10,4% da população adulta.

O cronista prossegue e refere que “o cérebro humano exige muito mais energia do que o cérebro dos outros primatas e isto só é possível com carne”. As descobertas arqueológicas sobre as dietas dos nossos ancestrais indicam que a alimentação dos primeiros humanos não era predominantemente à base de carne. Por exemplo, análises de restos de 24 indivíduos de sítios funerários nos Andes peruanos, datados entre 9000 e 6500 anos atrás, revelam que batatas selvagens e outros vegetais de raiz eram uma parte significativa da dieta antes da transição para a agricultura sistemática. Estes achados desafiam a ideia comum de que nossos ancestrais eram grandes consumidores de carne, sublinhando a relevância das fontes vegetais na alimentação.

Sobre a imagem do fazendeiro brasileiro que faz queimadas para produzir carne, que Henrique pretende que visualizamos, e sobre toda a sua narrativa que parece querer desvalorizar a desflorestação tropical: de acordo com a FAO, 420 milhões de hectares de floresta - uma área maior que a União Europeia - foram perdidos para a desflorestação entre 1990 e 2020. Entre 2019 e 2021, as importações da União Europeia estiveram associadas a 15% da desflorestação mundial ligada ao comércio direto. Em Portugal, 35% da desflorestação associada às importações teve origem no Brasil. A commodity com mais impacto na desflorestação importada do Brasil por Portugal é a soja (39,6%), destinada sobretudo à alimentação animal, seguida por produtos pecuários (28,8%). E, apesar dos “sucessos” na Amazónia, a desflorestação por pressão da pecuária contribui para mais de 97% de toda a perda de vegetação nativa no Brasil, nos últimos cinco anos, sendo que a desflorestação continua a aumentar no Cerrado, uma região de savana tropical que faz fronteira com a Amazónia. No Cerrado, a desflorestação aumentou quase 45%, em 2023 e face a 2022, atingindo o seu nível mais alto desde 2019. O Cerrado abriga 30% da biodiversidade do Brasil e é uma das principais reservas de água do país.

O autor afirma que “criar frangos ou perus é incrivelmente mais fácil”. Ainda que a expressão “fácil” seja vaga, podemos fazer notar algumas questões ambientais e de saúde associadas à massiva produção avícola (fora as importantes questões éticas). Contribui, por exemplo, para emissões de amoníaco, óxido nitroso e metano, sendo estes dois últimos poderosos gases de efeito estufa. O amoníaco, por sua vez, é um gás reativo e nocivo que leva à poluição do ar, do solo e da água e altera o equilíbrio natural dos ecossistemas, sendo que o contacto com amoníaco pode causar problemas de saúde, como redução na função pulmonar e irritação na garganta e nos olhos. Mas as consequências da produção de aves para consumo humano não ficam por aqui. Em março de 2024, o programa A Prova dos Factos (RTP1) levantou também questões relacionadas com o uso de medicamentos na indústria avícola. Em 2023, 95% dos frangos de pecuária, em Portugal, foram submetidos a algum tipo de medicação. Quase um em cada três precisou da administração de antibióticos. E as consequências são muitas, uma vez que se estima que, até 2050, 10 milhões de mortes em todo o mundo possam resultar da resistência aos antibióticos.

Com o ser “mais fácil”, talvez o autor estivesse a falar da relação de conversão alimentar (FCR), uma métrica usada para medir a eficiência com que os animais convertem o que consomem no produto final de origem animal, a ser consumido pelas pessoas. Nessa perspetiva, “fácil” é o cultivo de vegetais para consumo humano direto, sendo que a relação de conversão alimentar nem se quer se aplica a estes.

Henrique refere ainda que a produção de carne de vaca, nos EUA, duplicou desde 1960, mas que as emissões de gases com efeito estufa com origem no gado diminuíram 11%.

Seria mais prático se o autor usasse Portugal ou a Europa como exemplo mas, colocando-me na mesma linha de pensamento, verifico que, nos EUA, o metano proveniente da fermentação entérica aumentou mais de 5%, desde 1990, devido a um crescimento da pecuária, sendo que o metano é 80 vezes mais potente (em termos de aquecimento global) que o dióxido de carbono, num período de 20 anos.

Mas agora olhando para Portugal, o nosso país não tem cumprido a meta de redução de emissões na agricultura. A agricultura nacional contribui com 12% das emissões de gases de efeito estufa, sendo mais de metade proveniente da fermentação entérica, associada ao processo digestivo dos animais da pecuária. Desde 2005, as emissões de gases de efeito estufa do sector agrícola português aumentaram principalmente devido ao crescimento dos efetivos pecuários.

O autor fala ainda dos povos mais pobres do mundo, que têm de caçar para obter a proteína animal, o que conduz a desastres ecológicos, concluindo que “a pecuária salva e salvaria ainda mais a vida selvagem”. Como fundamento de tais afirmações, evoca um artigo que não toca no assunto da pecuária e que, pelo contrário, conclui que a crise nas florestas tropicais, impulsionada pela exploração excessiva e a perda de fauna, exige políticas e sistemas de gestão sustentáveis que envolvam governos e comunidades para proteger a biodiversidade e combater a caça e o comércio ilegal de vida selvagem.

O autor recorre ainda às pessoas no Congo como exemplo para suster a sua narrativa, e indica que muitos povos africanos ainda caçam “milhões e milhões” de toneladas de animais selvagens devido à ausência de uma indústria pecuária.

Todas as inúmeras tentativas de Henrique em justificar a importância da pecuária caem por terra quando o argumento se foca em países de baixo rendimento, já que, ambientalmente falando, é o consumo dos países mais desenvolvidos que move a componente ambiental do vegetarianismo. Para que o nosso planeta continue a nos alimentar no futuro, os países ricos precisam de reduzir drasticamente o consumo de carne - idealmente em pelo menos 75%. Se todos os humanos consumissem tanta carne quanto os europeus ou norte-americanos, muitos ecossistemas entrariam em colapso. O crescimento populacional humano, juntamente com séculos de exploração atmosférica pelas regiões mais ricas do mundo, resultou numa interrupção potencialmente irreversível na capacidade de restauração dos ecossistemas do planeta. Se estamos preocupados com as pessoas do Congo, comecemos por olhar para o nosso consumo, enquanto habitantes de um país e continente mais desenvolvidos.

A produção global de alimentos é responsável por 35% de todas as emissões de gases de efeito estufa, sendo a agricultura animal, incluindo a produção de ração, responsável por quase 60% dessas emissões. Sem uma transformação urgente e em larga escala no consumo global de carne, a agricultura sozinha ultrapassará o “orçamento” de carbono do planeta, necessário para manter o aumento da temperatura global abaixo de 2 °C até 2050, mesmo que as emissões de todos os outros sectores sejam reduzidas a zero.

O autor refere também que se se quer a preservação das espécies selvagens, não se pode ser contra a pecuária moderna associada à ciência e à economia moderna e que, na “obsessão” pela redução de gases que provocam aquecimento, as políticas verdes tendem a esquecer outras coisas, como o solo.

Falemos então do solo e de como o aumento do pastoreio está a contribuir para a degradação de zonas áridas, nomeadamente no sul de Portugal. Ora a verdade é que vivemos, atualmente, num contexto de muitas situações de sobrepastoreio que destroem a estrutura do solo.

Abordando a biodiversidade, o sistema alimentar global é o principal motor da perda da mesma, com a agricultura a ser uma ameaça para 86% das espécies em risco de extinção. De acordo com um relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, é necessário que os padrões alimentares globais privilegiem alimentos de base vegetal, principalmente devido ao impacto desproporcional da agricultura animal na biodiversidade, no uso da terra e no ambiente. Tal mudança, juntamente com a redução do desperdício alimentar, reduziria a pressão sobre os recursos naturais, beneficiando também a saúde das populações e ajudando a reduzir o risco de pandemias. Um dos maiores ganhos para a biodiversidade ocorre quando evitamos a conversão de terras para a agricultura, lembrando mais uma vez que a alimentação de base vegetal requer substancialmente menos recursos naturais para ser produzida, nomeadamente menos solo, mas também menos água.

O autor aborda também a pecuária regenerativa. Todos os eventuais argumentos a favor da pecuária regenerativa para o ambiente, nomeadamente para o solo, se tornam irrealistas perante os atuais níveis de consumo de produtos de origem animal. As enormes necessidades de terra da pecuária regenerativa, para atender aos atuais níveis de procura, simplesmente tornam impossível que o sistema alimentar atual seja simultaneamente sustentado por sistemas regenerativos e produza as mesmas quantidades de produtos de origem animal. Um relatório de 2022 concluiu que a quantidade de terra utilizada para a agricultura regenerativa teria de triplicar e ser 40% das terras agrícolas globais até 2030. A mesma investigação mostra que não há terras agrícolas suficientes no planeta para o efeito, o que poderia conduzir a mais desflorestação, implicando a perda de vegetação, sendo esta necessária para o sequestro de carbono. Já para não falar nas emissões de metano, provenientes do processo digestivo dos animais, algo a que a pecuária regenerativa dá continuidade, juntamente com o ciclo ineficiente de alimentar os animais com plantas com a finalidade de, por sua vez, se alimentar as pessoas com esses animais.

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