A revelação da dimensão dos abusos sexuais sobre crianças e jovens praticados no contexto da Igreja Católica já suscitou reações muito preocupantes por parte de alguns responsáveis, que mostraram que, em muitos casos, a empatia e a consideração pelas vítimas, quando existiram, não passaram de palavras de circunstância e que estes crimes foram encarados por alguns mais como um problema comunicacional e não como o reconhecimento de algo grave e sério com consequências permanentes nas vidas dos que sofreram.
A criação do grupo Vita alimentou em mim alguma esperança de que houvesse uma vontade genuína de apoiar as vítimas e alterar o futuro. Foi, contudo, com desalento que li o regulamento aprovado (por unanimidade) pela Conferência Episcopal para a fixação de compensações financeiras para as vítimas de abuso e descobri que o desprezo profundo continua. Se todos sabemos que não há dinheiro que pague o trauma avassalador e as suas consequências, também sabemos que as vítimas tiveram, ao longo da sua vida, o peso da existência afetada pelos abusos, seja pelos tratamentos a que tiveram de recorrer de forma continuada, num país em que, até há pouco tempo e ainda hoje, o acesso à saúde mental e ao acompanhamento terapêutico não está ao alcance de todos, seja por tudo o que não conseguiram atingir ao longo da sua vida como fruto do trauma.
Daniel Oliveira já escreveu aqui no Expresso sobre o peso de submeter as vítimas, sobretudo as que já venceram a barreira de falar com a Comissão Independente, a um “exame” perante uma comissão que averiguará o que é relatado. Um efeito óbvio de revitimização e uma, ainda que inconsciente, tentativa de dissuasão associada a esta metodologia.
Há, contudo, uma métrica desprezível neste regulamento associada à determinação das compensações financeiras que não pode deixar de ser comentada. Essa comissão fixará valores em função da sua apreciação subjetiva da gravidade do abuso. O elenco do que a Conferência Episcopal e o grupo Vita consideram ser grave ou menos grave é um exercício de insulto e ofensa às vítimas. São tidos em conta fatores como o tipo de agressão, o local do abuso, a diferença de idades entre a vítima e o abusador, a reação da família, o número de abusadores, apenas para citar alguns exemplos. O absurdo da crueldade torna-se mais evidente quando é concretizado. De acordo com este regulamento, ser violado por um sacerdote num descampado é menos grave do que ser violado na sacristia. De igual modo, se a criança tiver 6 anos e abusador 30, é menos grave do que se o violador tiver 50, ou se a vítima tiver 13 e o agressor 29. Se a vítima não tiver tido capacidade de relatar ou denunciar à família e não tiver obtido uma reação negativa, está-se perante uma gravidade menor do que se os seus pais não tiverem acreditado. Ser sodomizado à força aos 6 anos uma vez por uma pessoa é menos grave do que ser violado por duas. É difícil encontrar os adjetivos para qualificar este regulamento. Não se trata apenas de revitimização e dissuasão, trata-se de humilhação de seres humanos fortemente impactados. Trata-se da burocratização da violência sobre crianças por quem continua a não querer olhar para as vítimas com a consciência plena do mal infligido. Trata-se de já não considerar os abusos apenas como uma questão comunicacional, mas de as passar para o plano da maçada administrativa.
As alternativas a este exercício são várias, como não sujeitar as vítimas já identificadas pela Comissão Independente ou por outras estruturas a nova exposição ou determinar valores fixos sem reduzir uma violação a uma fórmula no Excel. A clarificação entre reparação e compensação torna-se necessária e devia nortear este regulamento.
É difícil esquecer a onda de whataboutismo que se seguiu à divulgação do relatório sobre os abusos sexuais na igreja, a voz dos que disseram que tudo não passava de um suposto ataque ao clero (eu próprio recebi o comentário alegadamente “fraterno”, mas assumidamente intimidatório, de um sacerdote que me disse que eu não devia emitir opiniões sobre este assunto), a reação de desprezo do Bispo do Porto sobre as vítimas, como se não existissem, ou a sua inominável comparação entre os abusos e a queda de um meteorito, porque ambos não teriam grande probabilidade de acontecer. Lembramo-nos do comentário sorridente de outro responsável sobre este tema e não olvidamos que não se está apenas perante um conjunto alargado de ocorrências, mas sim no contexto de inúmeras situações de encobrimento consciente e organizado. O argumento de que “a Igreja teve a coragem de tomar iniciativa” tenta apagar que essa coragem só surgiu fruto da pressão verbalizada de meses de vários católicos que não se conformaram com o silêncio, os mesmos que, na Igreja, ainda hoje não se conformam com este tipo de respostas. Acompanhei o trabalho da Comissão Independente e conheci a recusa de párocos por todo o país em divulgarem os canais de comunicação com esta Comissão. Conheci a crueldade da nomeação de pessoas conhecidas de vítimas para as Comissões Diocesanas, numa muito subtil tentativa de silenciamento.
Tenho muita pena que este tenha sido o caminho escolhido, nos antípodas do cristianismo. Tenho a certeza de que quem me tentou silenciar há uns anos por me ter manifestado a propósito da recusa da Igreja Católica portuguesa em agir perante os abusos vai, novamente, invetivar-me e acusar-me de coisas várias. Guardem essa energia para podermos olhar para dentro da instituição e a reumanizar, apoiados em muitos leigos que, lá dentro, não se conformam e lutam pela justiça e pela reparação.
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