Antes que se aborreça comigo, despacho dois esclarecimentos: i) nova direita não é no sentido da novidade da existência desta direita, mas do novo entendimento que a própria tem sobre o seu lugar na UE; e ii) na senda de outros, o foco deste artigo é a direita, sabendo que existem eurocéticos à esquerda, obrigado. Agora que me fez gastar mais de 300 caracteres, inicio.
Nem crer nem pertencer. Na década de 1990, ao constatar a descoincidência entre o número de pessoas que diziam ter religião e os índices de prática religiosa, a socióloga britânica Grace Davie cunhou a expressão crer sem pertencer (believing without belonging), descrevendo a nova forma de religiosidade não institucionalizada. Qual o interesse deste conceito para o texto? Estou a construir o argumento, já lá chego. Entre as décadas de 2000 e 2010, no auge da segunda vaga de direitização da Europa (link), a direita radical foi mais longe, não crendo (na UE) nem querendo pertencer ao bloco. Lembro-me com saudosismo dos tempos em que Beppe Grillo, do Movimento 5 Estrelas, sugeriu referendar online(!) o Euro e, por consequência, a saída de Itália da UE. Recordo, ainda comovido, a liderança do UKIP por Nigel Farage e a sua prosa sobre o Brexit – o primeiro tijolo a ser derrubado da parede do establishment. Mas também tudo quanto brotou ou ressurgiu neste período com o mesmo viés contra a integração europeia em França, Hungria, Áustria, Espanha, Países Baixos, Polónia Finlândia, Eslováquia ou Bulgária. Nestes casos, não havia crer nem pertencer. “Bruxelas”, as suas elites e instituições, era algo a ser combatido e, derradeiramente, extinguido. A integração europeia teria de cessar – nem crer nem pertencer.
Pertencer sem crer: Ser eurocrítico e questionar o eurofederalismo ainda está em voga e arrecada votos. Nas últimas eleições europeias, a extrema-direita fez ruir os governos em França e na Bélgica, abanou a coligação que governa a Alemanha, ganhou eleições em Itália, Áustria e Hungria e (re)conquistou muito terreno na Chéquia, Países Baixos e Polónia. No entanto, em especial desde o Brexit, assumir plataformas de rutura total com a UE deixou de ser sexy para o eleitorado e, naturalmente, para os partidos. Não é preciso ler o último Eurobarómetro (link), ser um ás da política ou pensar como Giorgia Meloni, Marine Le Pen e Viktór Órban para entender que a plataforma da desintegração europeia – a aposta num ‘exit’, na saída do Euro ou na aproximação declarada à Rússia – é contraproducente. Esta nova direita já não é simplesmente antissistema, ela quer ganhar espaço e fazer uso dos seus lugares de poder em Bruxelas e Estrasburgo. Esta nova direita está empenhada em mudar a direção da UE, envolver-se nos processos de tomada de decisão e avançar com políticas concretas.
O ponto central é que, embora esta nova direita mostre que pertence à UE, ela não crê numa miríade de princípios basilares da integração europeia. No que respeita ao Estado de direito, prefere flirtar com o iliberalismo democrático; para a economia, privilegia o protecionismo ao mercado único; sobre os direitos humanos, resvala facilmente para a discriminação das minorias; no que toca à livre circulação, escolhe as barreiras físicas e burocráticas; para as migrações, favorece a criminalização à integração; para a transição verde, desafia o consenso sobre a emergência climática; na relação entre Estados-membros oferece soberanismo ao invés de solidariedade; na política externa prefere geometrias variáveis com rivais sistémicos; para a guerra na Ucrânia, defende o mesmo conceito vazio de paz de Putin; por fim, para o projeto europeu, prefere um recuo (spillback) no processo de integração.
Alguém escreveu que a Europa está a viver o seu momento Trump, por conta da forma como a nova direita pretende minar, perdão, mudar o sistema a partir de dentro. Os mais moderados dirão que esta ideia é manifestamente exagerada. Os mais radicais afirmarão que este pode ser o início do fim da União como a conhecemos. Orbán, um dos rostos mais visíveis da conversão da nova direita europeia, decidiu escolher como slogan “Make Europe Great Again”, oferecendo uma inspiração trumpiana à futura presidência rotativa húngara do Conselho da UE. Um sinal dos tempos, diriam os tais radicais.
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