Opinião

Europeias 2024: uma lição das legislativas

Europeias 2024: uma lição das legislativas

Inês de Matos Pinto

Jurista, conselheira no Grupo S&D do Parlamento Europeu

No rescaldo dos resultados eleitorais de domingo, que trazem consigo mais preocupações do que soluções, o efeito da desinformação e do discurso político polarizado é uma lição relevante para o próximo exercício democrático no horizonte.

Apesar do combate democrático que se fez às ideias que defende, o Chega conseguiu passar a sua mensagem a mais de um milhão de eleitores. Enquanto força política comparativamente recente e com um aparelho partidário por isso menos consolidado que outros, fê-lo, entre outros fatores, graças a uma cobertura mediática consistente e, por vezes, até privilegiada, e sem recorrer a muito mais em termos de comunicação do que às redes sociais (onde nem sempre há contraditório). Alegações sobre fraudes em mesas de voto, divulgação enviesada de sondagens investigadas pela ERC, declarações descontextualizadas sobre o acesso de outros partidos às moradas dos recenseados no exterior do país e informações desmentidas pela PSP sobre supostos tiros que afinal eram rateres de mota - todos estes episódios são típicos da tática de cartilha utilizada pela extrema-direita a nível mundial.

Isto no mesmo ano em que entrou em vigor, há quase um mês, uma das leis europeias mais importantes dos últimos anos, o Regulamento dos Serviços Digitais, que classifica a desinformação como um risco sistémico, considerando o seu impacto negativo em processos democráticos e eleitorais e no discurso cívico. A nova lei dispõe que conteúdos ilegais como o discurso de ódio devem ser removidos pelas plataformas digitais, sob pena de sanções, e que estas devem garantir a existência de mecanismos fáceis de denúncia ou sinalização desses conteúdos por parte dos utilizadores. As grandes plataformas digitais utilizadas por um maior número de pessoas, como é o caso das usadas frequentemente durante as campanhas eleitorais (Facebook, Instagram, TikTok, X, etc.), têm obrigações adicionais de avaliação da existência de tais riscos e de adoção proativa de medidas, incluindo para impedir a rápida propagação de desinformação, hoje em dia potenciada ainda mais pela inteligência artificial generativa.

Também em fevereiro passado foram aprovadas novas regras europeias (sendo que a maioria só entra em vigor a partir de 2025) relativas à transparência e ao direcionamento da propaganda política que se debruçam, entre outros aspetos, sobre os anúncios políticos online - pagos, entenda-se. De acordo com as mesmas, além de uma identificação clara da propaganda política quanto à sua origem e financiamento, é necessário o consentimento explícito para utilizar dados pessoais (que não poderão incluir categorias como a religião, a etnia ou a orientação sexual) para distribuir o conteúdo, de forma a proteger o eleitorado contra a já bem conhecida e nociva prática de publicidade direcionada (e os algoritmos subjacentes).

A amplificação de falsas narrativas e de conteúdo informativo dúbio erode lenta mas seguramente as bases de qualquer democracia. Tal como noticiado, o alcance das publicações em diferentes redes sociais do Chega foi significativo. De acordo com um estudo do ISCTE, as publicações sobre a alegada fraude eleitoral atingiram mais de 733 mil pessoas. No caso da questionável sondagem que dava um suposto empate técnico do partido com a AD e o PS, outra pesquisa do ISCTE-IUL concluiu que tanto a maioria das publicações como a grande maioria das interações com as mesmas estão associadas às paginas dos seus militantes ou dirigentes. O impacto destas “fake news” não só nos resultados eleitorais mas também na mobilização do eleitorado (das mais elevadas desde 1995) não pode continuar a ser subestimado, especialmente quando há relatórios que indicam que mais de 87% dos portugueses consomem a maioria das notícias nas redes sociais.

Aliada à desinformação, a publicidade direcionada, por seu turno, cria bolhas ideológicas e informativas que fomentam o preconceito e impedem o confronto entre ideias diferentes - um exercício tão saudável quanto imprescindível na vida em sociedade. Basta acompanhar os comentários nas redes sociais dos últimos dias para perceber que as eleições de Domingo passado reforçam a necessidade urgente de promover o respeito pela opinião divergente, a começar pelos círculos mais íntimos, desde a família aos amigos. Tendo em conta os 48 deputados do Chega eleitos para a Assembleia da República, o papel dos órgãos de comunicação social será, possivelmente mais do que nunca, determinante. Seja ao não dar palco ao expectável discurso de ódio ou ao desconstruir incessantemente o argumentário enganador da extrema-direita, principalmente numa altura de tamanha instabilidade internacional.

Ainda que as novas leis europeias supramencionadas não venham influenciar verdadeiramente ou atempadamente uma campanha mais informada para as eleições de junho, sobretudo dada a distância percecionada dos assuntos que se discutem em Bruxelas, não deveriam passar em branco. Hoje, ao deparar-se com um qualquer post que, por exemplo, incite ao ódio e violência contra minorias como os imigrantes, qualquer um de nós tem à sua disposição a possibilidade de o denunciar e assinalar à plataforma digital em causa, que estará sob a obrigação de dar seguimento, averiguar e remover o conteúdo em violação do direito nacional e europeu. Se cada um tomar consciência desta possibilidade e a usar, talvez consigamos exercer um maior escrutínio coletivo do discurso político e, assim, reverter a tendência desoladora a que assistimos a tempo de não contribuir também para a radicalização dos órgãos de decisão na Europa sem a qual Portugal não prosperará num mundo geopoliticamente fragmentado.

As opiniões expressas neste artigo são estritamente pessoais e não representam as posições do Parlamento Europeu ou do grupo S&D.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate