Em política, tudo é efémero. Ontem de manhã, a normalidade imperava no plano institucional. À hora de almoço, a crise política instalou-se com a demissão do primeiro-ministro.
A saída de António Costa não era uma opção. Não lhe restava outro caminho, depois de se saber que membros do Governo, o seu chefe de gabinete e um dos seus amigos mais próximos estavam a ser objeto de investigação criminal e de buscas judiciais, por suspeitas de corrupção, de tráfico de influências e de prevaricação. E que ele próprio vai ser averiguado no âmbito de um processo que correrá os seus termos no Supremo Tribunal de Justiça.
Nunca é demais recordar que todos os envolvidos gozam da presunção de inocência. E, nessa medida, só o futuro dirá se as investigações confirmarão, ou não, as suspeitas que levaram aos acontecimentos de ontem. Mas é importante sublinhar que em causa estará, também, a credibilidade da Justiça. Porque, se tudo isto der em nada (sobretudo no que toca ao próprio António Costa), essa credibilidade sofrerá um abalo sem precedentes.
Constitucionalmente, a palavra é, agora, do Presidente da República, num daqueles momentos de solidão e de responsabilidade pessoal que a natureza singular do cargo determina.
A lei fundamental permite a Marcelo Rebelo de Sousa a opção por um de dois caminhos: a nomeação de um novo governo, necessariamente liderado pelo Partido Socialista, atenta a composição parlamentar atual, ou a dissolução da Assembleia da República. Na minha opinião, porém, só o segundo é plausível.
Em tese, nada impediria o Presidente da República de convidar o Partido Socialista a formar outro governo, indicando, para isso, um novo primeiro-ministro. Recordo, aliás, que Jorge Sampaio o fez na sequência da demissão de António Guterres, em 2001, após a estrondosa derrota nas autárquicas. E, à época, o PS nem sequer tinha maioria absoluta no Parlamento (era a célebre situação do 115-115).
Porém, Marcelo Rebelo de Sousa sempre deixou claro que a saída de António Costa do Governo (porventura para exercer um cargo europeu) o levaria, inexoravelmente, a convocar eleições antecipadas.
Recordo as passagens do discurso do Presidente da República em 30 de março de 2022:
“Agora que ganhou, e ganhou por quatro anos e meio, tenho a certeza de que Vossa Excelência sabe que não será politicamente fácil que esse rosto, essa cara, que venceu, de forma incontestável e notável, as eleições, possa ser substituída por outra, a meio do caminho.
Já não era fácil no dia 30 de janeiro. Tornou-se ainda mais difícil depois do dia 24 de fevereiro.
É o preço das grandes vitórias inevitavelmente pessoais e intencionalmente personalizadas.”
Ou seja: ao dizer o que disse – e como o disse -, foi o próprio Presidente da República que fechou, voluntaria e assumidamente, um dos caminhos que a Constituição lhe abre. E, por isso – embora outras razões pudessem também ser aduzidas -, creio que não há alternativa à dissolução e à realização de eleições antecipadas.
Claro que, de imediato, colocam-se duas interrogações: o que fazer com o Orçamento para 2024, por um lado, e como acautelar a necessidade de o Partido Socialista eleger um novo secretário-geral a tempo de disputar as eleições em condições minimamente aceitáveis, por outro.
Não me surpreenderia que Marcelo Rebelo de Sousa atrasasse o momento da aceitação formal da decisão ontem anunciada e da consequente dissolução da Assembleia da República, por forma a permitir que o Orçamento fosse aprovado, como sabemos que o será, por força da maioria parlamentar socialista.
Em dezembro de 2004, já após o anúncio, por Jorge Sampaio, da sua intenção de dissolver a Assembleia da República, em ordem a gerar a queda do governo de Santana Lopes, o Orçamento para 2005 foi aprovado. E a dissolução só foi formalizada em 22 de dezembro, marcando-se as eleições para 20 de fevereiro de 2005.
Há, no entanto, uma diferença substantiva. Então, foi o Presidente da República quem, por sua livre e espontânea vontade, desencadeou a crise institucional. Agora, ela partiu do próprio primeiro-ministro, cuja legitimidade política (ainda que não jurídica) está, desde ontem, irremediavelmente enfraquecida. E um governo enfraquecido não tem autoridade para, através da sua maioria parlamentar, impor um Orçamento.
Acresce que não me deixo convencer pelos argumentos catastrofistas das consequências para o país da não aprovação atempada do Orçamento. Pois não vivemos em 2022, até ao final de maio, em regime de duodécimos, precisamente na sequência da dissolução da Assembleia da República, então decidida por Marcelo Rebelo de Sousa?!
Diferentemente, sou mais sensível à necessidade de dar alguma margem ao Partido Socialista para escolher o novo líder e para preparar as eleições legislativas. Mas o país não pode ficar por muito tempo adiado. E recordo que, em 2002, Ferro Rodrigues foi eleito em 20 de janeiro e as legislativas tiveram lugar em 17 de março.
O Presidente da República anunciou que falará ao país amanhã, quinta-feira. Esperemos que os anúncios que fizer sejam aquilo que se impõe e de que Portugal precisa.