Opinião

Stress ocupacional e o burnout nos juízes: uma questão de ciência, não de crença

Manifestar desdém pela natureza académica de um estudo só porque não nos agradam os resultados, em termos corporativos, ou para defender um suposto mito do “trabalhador saudável”, não será certamente o caminho para uma adequada e atempada intervenção na realidade colocada a nu

Embora tenha sido publicado no número 173 da Revista do Ministério Público, Janeiro – Março de 2023, o artigo intitulado de “O stress ocupacional em profissionais forenses: uma análise comparativa entre Juízes, Ministério Público e Advogados” só agora agitou a atualidade noticiosa, motivando desabafos corporativos desligados de uma rigorosa e fundamentada ponderação científica. Tais manifestações incidiram essencialmente num único resultado deste estudo: 30 juízes, em 342 participantes (8,7%), assumiram recorrer a substâncias estupefacientes para os ajudar a lidar com a exigência do seu trabalho.

Numa lógica arcaica e defensiva segundo a qual mais vale censurar os mensageiros e a metodologia por estes utilizada, levantaram-se vozes desinformadas a referir que se tratava de um estudo com recurso a uma ferramenta utilizada pela primeira vez, que tinha sido utilizada a plataforma Google Forms, que a pergunta era confusa ou que, simplesmente, por mera convicção, não se acreditava minimamente na conclusão dos resultados. Analisamos, de seguida, cada uma destas afirmações.

Quando, em Psicologia, se desenvolve um instrumento de avaliação (sejam inventários de avaliação de personalidade, escalas mais breves de rastreio de sintomas ou comportamentos ou outros), há todo um processo complexo e cuidadoso de construção, que envolve várias etapas. O instrumento de avaliação, Inventário de Stress para Profissionais Forenses, que permitiu apurar os “controversos” resultados, não foi exceção.

Este inventário foi o resultado de um processo de construção e validação, que passou por uma aprofundada análise e estudo da literatura e investigação sobre os fatores de stress mais reportados, especificamente, pelos juízes, advogados e procuradores, assim como pela análise de diversos instrumentos de avaliação de stress, stress ocupacional eburnout já existentes internacionalmente, mas que não consideravam as especificidades da atividade forense.

Então, mas se existem outras escalas de análise usadas internacionalmente para medir os níveis de burnout profissional, já testadas e validadas pela comunidade científica, por que motivo os quatro investigadores deste estudo se lembraram de criar um novo instrumento de avaliação? Apesar de se antever do parágrafo anterior a resposta, na dúvida, enfatize-se que a sua construção foi motivada pela inexistência de instrumentos de avaliação de stress ocupacional e burnout focados nas particularidades inerentes ao trabalho desempenhado por profissionais forenses. De acordo com a literatura da especialidade, as minuciosidades do trabalho forense são responsáveis por tornar este grupo de profissionais mais suscetível ao stress e burnout comparativamente a profissionais de outras áreas. Assim, ao contrário de outros instrumentos de avaliação do stress ou burnout disponíveis, impunha-se a necessidade teórica e prática de uma ferramenta que atendesse aos stressores específicos do trabalho de profissionais forenses. Por exemplo, o Inventário de Burnout de Maslach (uma das tais escalas de análise internacionalmente reconhecidas já testadas e validadas pela comunidade científica, mas noutras populações e, também, com estudos na população portuguesa) não atende, compreensivelmente, a fatores que causam stress, em particular, aos profissionais forenses, por não analisar o impacto que a participação em julgamentos morosos tem nos profissionais ou por não reconhecer que os profissionais forenses têm de lidar com casos violentos (crimes sexuais, homicídios). Como tal, o instrumento que foi usado pela primeira vez permite, num registo específico, não só analisar os níveis de stress destes profissionais, como identificar quais as suas principais causas.

Assim, para além de revisão bibliográfica, análise crítica de outros instrumentos e natureza específica do inventário cuja necessidade de formulação foi identificada, teve-se também em linha de conta, na construção e adaptação dos itens incluídos no instrumento, o feedback prévio de diversos profissionais, em particular de psiquiatras forenses, advogados, procuradores e juízes, cujo conselho foi solicitado e se posicionaram criticamente sobre um conjunto vasto de itens, dando sugestões de adequação às propostas iniciais.

No fundo, recordando o icónico Vasco Santana, no filme Canção de Lisboa, é caso para se dizer “escalas há muitas”, contudo, não encaixavam nas especificidades desta população.

A versão experimental do Inventário de Stress para Profissionais Forenses, com 41 itens, foi alvo de um tratamento estatístico que passou pela análise da qualidade psicométrica dos itens e da sua adequação à população de profissionais forenses. Recorrendo a linhas orientadoras internacionalmente aprovadas para o desenvolvimento e validação de instrumentos de avaliação psicológica (como o International Test Commission) e com recurso a softwares estatísticos específicos (SPSS e Mplus), analisaram-se os diversos parâmetros de precisão e validade do instrumento, alcançando-se uma versão final de 25 itens, que serviu de base à investigação e que evidenciou uma qualidade equiparável ou superior à de outros instrumentos já existentes, com a clara vantagem da sua natureza específica adaptada aos profissionais forenses. Ou seja, confirmou-se, metodologicamente, que o item relativo às substâncias estupefacientes (como cocaína, haxixe) mereceu validação estatística que justificou a sua manutenção na versão final do inventário.

Para não maçar o leitor com especificidades metodológicas bem conhecidas de quem realiza a investigação em Psicologia, é possível para os interessados consultar os artigos já publicados, que abordam sumariamente as adequadas qualidades psicométricas do inventário, merecendo a nota que se encontram já submetidos mais dois artigos científicos sobre o tema. Um deles sobre uma análise mais detalhada e exclusiva da amostra dos juízes (“O Stress ocupacional dos Juízes portugueses: Os contributos do Inventário de Stress para Profissionais Forenses”) e um outro submetido numa revista internacional indexada e com revisão por pares unicamente sobre os procedimentos e características do Inventário de Stress para Profissionais Forenses, para que a comunidade científica possa replicar a utilização deste instrumento e potenciar estudos comparativos (“Forensic Professionals’ Stress Inventory (FPSI): Development and psychometric properties”).

Acresce que nesta investigação foram utilizados mais dois instrumentos internacionalmente reconhecidos, um de personalidade (Inventário de Avaliação da Personalidade) e um de Burnout (Inventário de Burnout de Oldenburg), que foram, de igual modo, aplicados à amostra dos 690 profissionais forenses. Ainda que o primeiro instrumento acima mencionado tenha escalas de controlo das respostas para perceber a validade dos perfis obtidos, para garantir que as respostas dadas pelos participantes eram válidas, ou seja, que não eram exageradas ou dissimuladas, os investigadores incluíram, no protocolo de avaliação, itens de um instrumento de avaliação da desejabilidade social (Escala de Desejabilidade Social de 20 Itens, igualmente validado para a população portuguesa). Desta forma, os protocolos considerados inválidos foram prontamente eliminados (diga-se que, na verdade, poucos, pois não se entende que motivação teriam os participantes para gastar o seu precioso tempo a responder a um questionário anónimo, confidencial e online, mentindo). Para que conste, as relações entre os instrumentos aplicados foram positivas e fortes, reforçando a validade do tal instrumento utilizado pela primeira vez, o Inventário de Stress para Profissionais Forenses, enquanto ferramenta específica de avaliação do stress ocupacional.

Foi também levantada a suspeita de que o recurso à plataforma Google Forms abria espaço a que o protocolo pudesse ter sido respondido por pessoas externas à profissão. Apenas faltou dizer que estas pessoas invadiram esta investigação, só e apenas, para prejudicar os senhores juízes e as senhoras juízas, e já agora para enganar os investigadores... Sucede, porém, que de forma bastante frequente, sobretudo desde a pandemia, as investigações recorrem a plataformas online, como o Google Forms, o Qualtrics ou o LimeSurvey (apenas para enumerar alguns softwares), as quais congregam um conjunto de recomendações de uso e boas práticas para os dados coletados serem seguros.

No caso da investigação sob escrutínio, o protocolo não foi disponibilizado em nenhum fórum ou rede pública acessível a qualquer internauta. Pelo contrário, foi diretamente enviado para o e-mail institucional de profissionais forenses pelas suas tutelas, designadamente o Conselho Superior de Magistratura, dois Conselhos Regionais da Ordem de Advogados (os únicos que responderam ao pedido de divulgação) e à Procuradoria-Geral da República. O estudo contou ainda com o apoio na divulgação da Associação de Juízas Portuguesas e da Associação Portuguesa da Advocacia em Prática Individual, que partilharam o estudo unicamente entre os respetivos profissionais. Por outras palavras, não havia, assim, forma realista de pessoas estranhas à população-alvo acederem livremente ao protocolo de avaliação.

Quanto à possibilidade de um juiz, que se presume com competências intelectuais bastantes acima da média, atendendo à escolaridade necessária para o exercício da profissão, poder encarar o item “Preciso de recorrer a substâncias estupefacientes (e.g., cocaína, haxixe) para me ajudar a lidar com a exigência do meu trabalho” como confuso é, no mínimo, desconcertante. Por seu turno, se uma frase linear de 20 palavras resulta num entendimento errado e, consequentemente, numa resposta imprecisa, o que poderemos pensar das decisões que envolvem a leitura de vários volumes processuais e inúmeros elementos de prova, cuja integração e análise crítica é crucial.

Já quando lemos, por mera convicção, que não se acredita nem um pouco na conclusão dos resultados de uma investigação científica, que cumpre cabalmente os necessários requisitos metodológicos, estamos ao nível de um conhecimento popular, valorativo, assistemático, parcial, enviesado e inexato que se distancia do conhecimento científico. Não se entende, então, por que motivo é que 8,7% dos juízes não podem ter assinalado, por sua iniciativa (e/ou até como pedido de ajuda), que recorrem a substâncias estupefacientes (como cocaína, haxixe) para os ajudar a lidar com a exigência laboral. Para se acreditar em tal resultado, o que seria necessário?

É que mesmo o Código Civil, ou o Código de Processo Penal, remetem para conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, sendo o conhecimento científico um daqueles em que se devem suportar. E o conhecimento científico, digno desse nome, é racional, objetivo, factual, analítico, verificável, dependente de investigação metódica, sistemática, acumulativa e não é um sistema dogmático e cerrado, em que se rejeita informação apenas porque sim ou não se acredita, assim como não é absoluto ou final, podendo surgir, imagine-se só, novos dados e, inclusive, novas escalas e instrumentos de avaliação.

No livro Psicologia e Justiça, publicado em 2008 e coordenado pelo Professor António Castro Fonseca, da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, surge o alerta de que o senso comum, a psicologia intuitiva e as teorias implícitas do comportamento abundam no sistema de justiça, dentro e fora dos tribunais. Todavia, essas crenças nem sempre estão de acordo com os dados da investigação científica, chegando mesmo a ser contrafactuais.

Por isso, mesmo que não se tenha os recursos de enfrentamento necessários para olhar para dentro, que se tenha a humildade e a capacidade de olhar para fora, pois a evidência científica atual demonstra, no geral, que o stress e burnout aumentam a probabilidade de consumos de substâncias. Ora, apesar de preocupante, a conclusão de que 8,7% dos juízes consome substâncias estupefacientes não é surpreendente face ao apresentado na literatura. Aliás, desde a década de 90, com as publicações “The prevalence of depression, alcohol abuse, and cocaine abuse among United States lawyers” e “Substance abuse within the legal profession: A symptom of a greater malaise”, que se fala do abuso de substâncias em profissionais forenses e, a nível mundial, assiste-se a um cenário semelhante: no que diz respeito à dependência de álcool, encontram-se percentagens que vão até aos 22,6% (muito superiores aos 11,4% que encontrámos na amostra nacional) e, no que diz respeito ao consumo de drogas, estas vão até aos 21% (mais do dobro do que encontrámos com os juízes portugueses).

Este fenómeno não está limitado aos juízes, advogados ou procuradores. Os estudos têm revelado que cerca de 7% dos médicos do Reino Unido e 8 a 15% dos médicos dos Estados Unidos da América são dependentes de álcool, números próximos aos obtidos no presente estudo. Um estudo com médicos veterinários revelou que cerca de 22,9% está em risco moderado de ter alcoolismo e que 4,7% tem consumos de drogas. Estudos realizados com órgãos de polícia criminal apontam para uma prevalência de dependência de álcool e drogas na ordem dos 7,8%.

Estes dados tornam evidente que o problema do consumo de substâncias ilícitas é pervasivo nas profissões com elevados níveis de stress ocupacional, como é o caso de médicos, veterinários, polícias e, certo é, profissionais forenses, nos quais se incluem os Juízes.

É também o momento de salvaguardar que os investigadores não advogam que o seu inventário é perfeito. As limitações fazem parte do processo de investigação. No caso, o instrumento que motivou o estudo na base das notícias avançadas foi concebido como ferramenta de despiste e sinalização de sintomas de stress ocupacional. Como tal, não é um instrumento diagnóstico (nem nunca anunciou ser), mas antes uma ferramenta que procura auxiliar profissionais da área da Psicologia na identificação de sintomas de stress judicial, no sentido de proceder preventiva ou atempadamente a um posterior encaminhamento para uma avaliação mais completa e auxílio na delineação de planos de intervenção quer médica, quer psicológica.

Talvez o menos importante, porque o texto já vai bem mais longo do que o habitual, importa ressalvar que os quatro investigadores que realizaram o estudo em apreço (Mariana Moniz, eu próprio, Octávio Moura e Mário R. Simões) são psicólogos e investigadores, integrando o Centro de Investigação em Neuropsicologia e Intervenção Cognitivo-Comportamental (CINEICC) e o Laboratório de Avaliação Psicológica e Psicometria (PsyAssessmentLab, em cujo site podem ser identificados numerosos instrumentos de avaliação, originais ou adaptados para a nossa população, que têm sido objeto de estudos sistemáticos de validação publicados em revistas internacionais e nacionais), ambos pertencentes à Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra.

Por isso, mesmo que não seja possível dizer que os juízes estão em burnout sem um diagnóstico formulado por um profissional de saúde mental, nem tão pouco dizer que os juízes andam a trabalhar nos tribunais sob o efeito de haxixe ou cocaína por causa de uma percentagem de 8,7%, o facto é que a nossa investigação indica também que 85% dos profissionais forenses auscultados (586 participantes de um total de 690) e, especificamente, 92,4% dos juízes (316 de um total de 342) concordou com a afirmação “Sinto que faltam meios (e.g., tecnológicos, humanos) na justiça que me permitam um melhor exercício das minhas funções”, o que não augura nada de bom para os seus profissionais, para a justiça ou para o país. Agora, é escolher se se pretende varrer os resultados para debaixo do tapete, como nada se passasse, ou se optamos por enfrentar as evidências demonstradas, para evitar uma rápida exaustão dos profissionais forenses. Para tal basta beneficiar de outra potencial virtude do conhecimento científico: a utilidade! Para se tirar ainda mais partido dos contributos científicos relativamente aos profissionais forenses, é necessária mais investigação, tendo em conta que existem poucos estudos centrados nestes grupos, em particular nos juízes.

Manifestar desdém pela natureza académica de um estudo só porque não nos agradam os resultados, em termos corporativos, ou para defender um suposto mito do “trabalhador saudável”, não será certamente o caminho para uma adequada e atempada intervenção na realidade colocada a nu.

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