Opinião

A difícil relação de António Costa com a verdade

A difícil relação de António Costa com a verdade

José Matos Correia

Advogado, presidente do Conselho de Jurisdição Nacional do PSD

Também entre nós o exemplo de apego ao equilíbrio, à contenção e á seriedade dos argumentos, se vai esfumando. E a postura de António Costa no debate orçamental é disso prova cabal

Em tempo de crescimento dos extremismos, é imperioso que os partidos e os políticos (ditos) moderados, em vez de deitarem gasolina na fogueira, tenham a coragem de remar contra a maré. E, quanto mais elevada é a sua relevância institucional, maior é a exigência que sobre eles deve recair.

Sei bem, por experiência própria, que as discussões no âmbito parlamentar são marcadas por exageros retóricos, até para motivar o apoio e o aplauso das hostes. Mas, entre o exagero, por um lado, e os desmandos linguísticos e a falta á verdade, por outro, vai uma distância abissal, que não pode nem deve ser percorrida.

Infelizmente, também entre nós o exemplo de apego ao equilíbrio, à contenção e á seriedade dos argumentos, se vai esfumando. E a postura de António Costa no debate orçamental, na passada segunda-feira, é disso prova cabal.

No final de 2022, numa entrevista, o Primeiro-Ministro apelidou os Deputados da Iniciativa Liberal de “queques que guincham”. Agora, decidiu manter-se no mesmo registo e, dirigindo-se ao líder do partido, acusou-o de não estar na Assembleia da República para representar quem trabalha.

Nas eleições legislativas de 2022, a Iniciativa Liberal obteve 273399 votos. De pessoas mais novas e mais velhas. De pessoas que trabalham ou estudam, que estão reformadas ou aposentadas. De pessoas mais abastadas e de outras que têm menos posses. Mas que merecem o mesmíssimo respeito que aquelas que, no exercício da sua liberdade, optaram por apoiar outros partidos. E que, sobretudo, têm igual dignidade cívica e política.

A ofensa gratuita a representantes eleitos não é aceitável, nem compreensível. Mas é-o, ainda menos, quando se atinge, directamente, os cidadãos que os escolheram. E a censurabilidade da ofensa agrava-se quando o responsável é o próprio chefe do Executivo.

Pena é que o Presidente da Assembleia da República, que tão implacável tem sido nos reparos que formula em certas circunstâncias, não tenha o cuidado de intervir de modo similar quando os intervenientes vêm dos vários sectores da esquerda. Como não o fez agora.

No plano das questões de substância, António Costa “atirou-se” particularmente ao PSD. Talvez porque, sabendo que a razão não está do seu lado, preferiu optar pela velha táctica segundo a qual a melhor defesa é o ataque.

Desde logo, acusou o PSD de ter mentido aos Portugueses quando, há cerca de um ano, propagou (até em cartazes) que as pensões iriam sofrer um corte de mil milhões de euros. Ora, António Costa sabe bem que quem está a faltar à verdade é ele.

Com efeito, o adiantamento de um pagamento das pensões, em Outubro de 2022, conduziria à a aplicação da fórmula de actualização legalmente prevista a partir de um valor base inferior. E isso significaria um corte que se iniciaria em 2024 e que, ao longo do tempo, atingiria aquele montante.

Em Abril de 2023, e percebendo a dimensão do sarilho em que se metera (porque as explicações que deu foram desmontadas por toda a gente, da esquerda à direita, excepto, como é óbvio, pelo Partido Socialista), corrigiu o tiro, levando a cabo um aumento intercalar das pensões que eliminou o futuro efeito negativo da decisão anterior.

Ou seja: António Costa mentiu, quando afirmou que o PSD tinha mentido.

Por outro lado, ufanando-se da diminuição do IRS que o orçamento para 2024 vai promover, acusou o PSD de ter abandonado a proposta, vinda do tempo de Rui Rio, de redução do IRC. E de já nem falar do IRS.

De novo, António Costa mentiu. Porque o PSD já antecipou que, no âmbito do debate na especialidade, vai propor a baixa do IRC para 19%. E que vai insistir nas medidas que anunciou, em matéria de IRS, em Agosto passado, as quais, de resto, vão muito mais longe do que aquilo que o orçamento prevê.

António Costa trouxe á colação, também, aquilo que, segundo ele, é a prática do PSD sempre que chega ao poder: um enorme aumento de impostos.

Historicamente, isso não é verdade. Mas, mesmo no que toca aos períodos mais recentes, convenientemente “esqueceu-se” de dizer que o aumento de impostos (que, note-se, dez anos decorridos ainda não reverteu) resultou do desastre da governação socialista, que fez desse aumento, para aqueles que se lhe seguirem, não uma opção, mas uma necessidade. Em 2002, após o fim do governo Guterres. E, em 2011, depois do governo Sócrates e da intervenção externa, por este solicitada. Governos que, relembre-se, António Costa sempre apoiou com entusiasmo.

Para não variar, António Costa não disse a verdade, ainda, quando tentou justificar o crescimento da carga fiscal, que o orçamento claramente assume. Segundo ele, tal não se fica a dever aos impostos, mas ao crescimento do emprego. Mas, se assim fosse, como explicar o facto de, em 2024, as contribuições para a segurança social manterem o seu peso no PIB? Ou de o próprio Governo prever um aumento da taxa de desemprego?

Porém, a relação difícil de António Costa com a verdade não ficou evidenciada, apenas, no debate orçamental. Basta lembrar as suas declarações sobre a imposição, por Bruxelas, da privatização da TAP, como condição para a aprovação do seu plano de viabilização. Declarações que Pedro Nuno Santos veio desmentir de forma tão clara, que o Primeiro-Ministro teve de reconhecer que, afinal, se tinha exprimido mal (fazendo recordar a tese do erro de percepção de Mário Centeno…).

Se o seu registo governativo não é famoso, António Costa podia, ao menos, preocupar-se com a manutenção do nível do debate político. A bem da qualidade da democracia que é cada vez mais necessária. E em ordem a não dar argumentos adicionais aos seus detractores.

José Matos Correia escreve de acordo com a antiga ortografia

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