Opinião

“Habitação Mais” e o irrealismo de aumentar a habitação sem contar com o setor privado

Análises independentes indicam que a crise atinge, apenas, franjas da população: 79% (números do Governo) a 85% (números da União Europeia) da população portuguesa está alojada em casa própria, tendo, sim, problemas com a banca, enquanto muitos habitantes não‑proprietários dispõem de arrendamentos sólidos

No último ano instalou-se na opinião pública a ideia de uma crise habitacional. Para essa crise contribuíram a Guerra da Ucrânia, a inflação, a subida das taxas de juro, a recuperação económica com afluxo de estrangeiros e ainda: a pressão política das oposições ao Governo; o interesse dos comentadores; e a própria comunicação social.

Análises independentes indicam que a crise atinge, apenas, franjas da população: 79% (números do Governo) a 85% (números da União Europeia) da população portuguesa está alojada em casa própria, tendo, sim, problemas com a banca, enquanto muitos habitantes não‑proprietários dispõem de arrendamentos sólidos.

As medidas já tomadas assentam no sector público, lento, burocratizado e com poucos fundos disponíveis; perdem‑se verbas em funcionalismos e em custos de transação. Em suma: faltavam resultados, numa altura em que perde credibilidade imputar o problema à “liberalização” de 2012.

Neste circunstancialismo, o Governo publicitou um programa denominado “Habitação Mais”, no início de 2023. As medidas preconizadas, de diverso tipo, ficaram conhecidas no grande público pelo congelamento de rendas futuras, pelo arrendamento compulsivo de prédios “devolutos” e pela “mão pesada” contra o alojamento local.

Após muita controvérsia, o Parlamento, apoiado pelo partido maioritário, adotou o Decreto da AR 81/XV, que “aprova medidas no âmbito da habitação, procedendo a diversas alterações legislativas”. Este diploma foi vetado, por razões políticas, pelo Presidente da República, mas foi depois confirmado no Parlamento, sem qualquer alteração. Foi publicado como Lei nº 56/2023, de 6 de outubro.

Esta lei joga com cerca de duas dezenas de diplomas variados e de natureza muito distinta. No campo da locação, na parte dedicada aos incentivos ao arrendamento habitacional, está previsto o arrendamento forçado de habitações devolutas, com determinadas limitações de renda e mediante um procedimento burocrático cuidado e moroso. Quanto à segurança no mercado do arrendamento, avulta a limitação de rendas em novos contratos: não podem exceder em mais de 2% a renda praticada em contratos celebrados nos cinco anos anteriores à entrada em vigor da lei.

Independentemente de juízos políticos, impõe‑se uma breve referência jurídica sobre estas alterações. O direito à habitação, em boa hora inserido na Constituição, representa um princípio programático que o Estado deve concretizar através de medidas adequadas. Ninguém pode contrapor o “seu” direito à habitação aos direitos de propriedade de cidadãos isolados, no que representaria uma quebra grave do princípio da igualdade. O direito à habitação é suportado por todos, através do imposto.

Custa aceitar que um problema concreto de tipo económico (o da habitação) só encontre soluções ideológicas. Haverá forma de técnicos competentes, independentemente das suas convicções pessoais, assentarem em medidas concretas, que permitam diagnósticos claros e soluções eficazes.

Isto dito, não parece realista que, num País sujeito à economia de mercado e fortemente aberto ao exterior, se pretenda aumentar a oferta de habitação (seja pelo arrendamento, seja pela aquisição) sem o envolvimento do sector privado.

Ora as medidas icónicas da Lei são claramente contrárias ao investimento privado, com relevo para os arrendamentos forçados e para a limitação de rendas em contratos futuros. Segundo os comentadores económicos de vários quadrantes políticos: elas atacam a oferta de habitação, quando esta deveria ser apoiada. Contrariamente às intenções do legislador, efeitos negativos refletiram-se, de resto, no mercado da habitação, logo após o anúncio do pacote “habitação mais”, feito no início de 2023. Ocorreram uma imediata subida dos preços para aquisição, uma clara alta das rendas e uma quebra na construção de novas habitações. Tudo isto foi agravado pela demora legislativa em aprovar e publicar o diploma final. Num futuro exemplo de escola, as medidas adotadas conduziram a um agravamento da situação que se pretendeu corrigir.

A Ciência do Direito, nas margens do que dispõe, pode reagir, interpretando restritivamente quer as limitações à liberdade contratual, quer as restrições não compensadas, ao exercício da propriedade privada.

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