Não, não, desta vez não se trata do rapto da Europa por parte de Zeus. Trata-se, isso sim, da luta pela liberdade, em nome da unidade e do futuro do Ocidente que se trava nas imensas planícies da Ucrânia Oriental a trazer à memória o ensaio do recentemente falecido Milan Kundera, com o título “Um Ocidente Sequestrado”.
Aí, nessa pequena grande obra publicada em França no ano de 1983, já durante o exilio do escritor, e só recentemente traduzida entre nós, este apela aos fundamentos ancestrais da cultura ocidental, como a tradição romano-cristã, o humanismo do renascimento e o iluminismo setecentista, enquanto traços de união de um Ocidente que devia então pôr fim ao sequestro oriental-comunista, ainda sob o manto da famosa cortina de ferro que divida o Leste do Oeste na Europa.
Um Ocidente que, depois da longa Primavera que se seguiu às revoluções liberais-democratas de 1989, volta a estar sob ameaça de sequestro por parte do grande Império russo-eslavófilo, agora de braço dado com o distante, mas sempre presente, Império do Meio, esse de aparência globalista por fora, mas fechado e autoritário por dentro e ainda matizado do vermelho da velha ideologia comunista.
Trata-se de um sequestro por via do abraço real e simbólico da longa mão continental-asiática sobre a pequena península ocidental, rosto da grande Eurásia. Razão pela qual a sobrevivência do atual projeto europeu nunca dependeu tanto da vitória da Ucrânia na guerra contra o invasor russo. É que a queda da Ucrânia em mãos russas, não significará unicamente o sequestro da Europa Central, mas o fim da Europa Ocidental tal como a conhecemos.
Ou seja, a derrota da Ucrânia e a consequente expansão da Rússia e da sua nova aliada China, não implicará, simplesmente, como adiantava premonitoriamente Kundera em 1983, a tragédia da Europa Central, mas a tragédia de todo o continente europeu.
Na verdade, a recuperação, por parte de Vladimir Putin do velho sonho imperial czarista e, porque não dizê-lo, da antiga União Soviética, de transformar o longo espaço vazio da Rússia na sede de uma monarquia universal, qual vontade cósmica de representar a grande terra firme em nome de Deus, será uma constante ameaça à liberdade e tranquilidade dos europeus.
Ameaça, não só à sua liberdade de espírito, à sua liberdade de expressão, quanto a quebra flagrante da dignidade humana, com o atentado à vida de cada um dos europeus, através do uso sistemático da violência, como forma normal de exercício do poder.
É certo que muitos dirão que afinal este temor é excessivo ou mesmo abusivo, pois afinal o território da Rússia que conta também é geograficamente europeu.
Mas a Europa de que falo não é “A outra Europa”, para usar a expressão iniciada por Czesław Miłosz, e retomada mais tarde, embora com um sentido diverso, por Hans Magnus Enzensberger, circunscrita pela geografia e que incluiu uma parte do mundo eslavo ou ortodoxo, mas a Europa do espírito, a Europa da cultura, com a sua história e identidade própria, a que chamamos Ocidente.
Afirmar isto não significa que a nossa Europa seja, ou tenha sido sempre, um poço de virtudes ou uma terra sem mácula, pois basta olhar para o recente século XX para tender a concluir precisamente o contrário. Ainda assim, não existirão hoje no mundo muitos sítios onde todos queiram viver e em que a vida humana seja mais respeitada.
Também por isso, e terminando com as palavras de Kundera, “a frase morrer pela pátria e pela Europa é uma frase que não pode ser pensada em Moscovo ou Leninegrado