Opinião

As ideias de George Soros são o seu grande legado – e vão continuar a fazer caminho

Apesar dos seus 93 anos, Soros não se vai sentar silenciosamente à margem. Previu que a Rússia vai perder a guerra na Ucrânia e tentou chamar a atenção para a rápida deterioração do sistema climático global

Para um dos filantropos mais controversos do mundo, tem sido um ano um cheio. George Soros, que fez 93 anos no mês passado, passou o comando da Open Society Foundations (OSF) ao seu filho Alexander, de 37 anos, em dezembro passado. Deste modo, dada a sua estatura internacional, os seus interesses intelectuais e o seu vigoroso envolvimento nos assuntos mundiais, esta poderia ser uma boa altura para Soros pensar no seu legado.

Mas quando o encontrei pela última vez, há nove anos, o seu legado era a última coisa em que pensava. Em vez disso, estava preocupado com o rumo que a Europa de Leste estava a tomar, com o futuro da União Europeia, com o destino dos ciganos, com a Birmânia, com a Rússia e com o Tribunal Penal Internacional. Estava preocupado com a crise do capitalismo global e com as divisões crescentes na sociedade norte-americana. Não mostrava qualquer interesse em deixar um legado.

As coisas mudaram desde então. É regularmente apontado por alguns políticos como encarnação do demónio, o inimigo perfeito contra o qual é fácil estabelecer credenciais populistas, autoritárias, antiglobalistas e conservadoras.

Na Hungria, o primeiro-ministro Viktor Orbán conseguiu uma vitória eleitoral estrondosa ao fabricar e depois combater a imagem de Soros como alguém que que impunha aos húngaros a imigração muçulmana e políticas sociais liberais. Um ministro do governo de Narendra Modi, na Índia, afirmou que Soros quer “destruir os processos democráticos da Índia”. Na Turquia, Recep Tayyip Erdoğan chamou-lhe "o famoso judeu húngaro Soros", “designa pessoas para dividir nações e destruí-las”. E em maio, Elon Musk publicou no Twitter (agora X) que Soros lhe fazia lembrar Magneto, o vilão da Marvel Comics, tendo afirmado que “odeia a humanidade”.

Certa vez, Soros disse-me que se orgulhava de ter os inimigos que, inadvertidamente, vinha a acumular: ao pavonearem-se com as suas crenças, estavam a provar que Soros tinha razão.

George Soros cresceu na Hungria numa altura em que ser judeu era, na melhor das hipóteses, perigoso e, na pior, letal. O seu pai, Tivadar, foi um advogado empreendedor e ensinou o jovem George a “misturar-se com a paisagem e simplesmente desaparecer”, como a maioria dos animais faz quando é ameaçada. George tinha apenas 14 anos quando os nazis começaram a agrupar os judeus húngaros, tornou-se Sandor Kiss, um refugiado da Roménia que vivia com o seu padrinho, um funcionário do Ministério da Agricultura. Mais de 450 mil judeus húngaros foram assassinados durante o Holocausto. A família Soros sobreviveu.

George continuou os seus estudos em Londres, sustentando-se através de candidaturas a instituições de beneficência e de trabalho braçal. Inscreveu-se na London School of Economics, onde permaneceu sob a influência do filósofo Karl Popper. “Uma sociedade aberta”, escreveu Popper, “não é uma sociedade perfeita, mas uma sociedade imperfeita aberta ao autoaperfeiçoamento”. Nas sociedades abertas, ideias contraditórias podem coexistir alegremente. Em contrapartida, as sociedades fechadas – que incluem ditaduras de todos os géneros – afirmam ser portadoras da verdade única e definitiva e não aceitam qualquer oposição. Nessas sociedades, só a força bruta pode garantir a adesão servil às regras. George Soros já tinha visto duas ditaduras perigosas – o nazismo e o estalinismo – e as ideias de Popper para uma forma alternativa de organizar o mundo tiveram um efeito duradouro sobre ele.

Em 1969, Soros criou o seu primeiro fundo de cobertura (hedge fund) com 4 milhões de dólares dos EUA, que angariou junto de indivíduos abastados que foram convencidos pelo seu discurso sobre uma nova forma de fazer fortuna. Em 1980, o seu fundo Quantum tinha crescido e valia 100 milhões de dólares; em 1987, os seus ativos valiam 21,5 mil milhões de dólares.

Desde 1984, doou mais de 32 mil milhões de dólares a várias causas e, nos anos que antecederam o desmantelamento do muro de Berlim, ajudou organizações pró-democracia, grupos dissidentes e de resistência, pessoas presas, escritores cujos livros tinham sido proibidos, líderes sindicais e cientistas cujo trabalho já não era desejado pelos regimes repressivos. Aconselhou os novos governos democráticos sobre a forma de gerir a transição e defendeu a inclusão destes países na União Europeia.

Desde 1993, a Open Society Foundations (OSF) tem sido o principal veículo para o ativismo internacional de Soros em torno das reformas democráticas. O apoio de Soros à mudança do sistema judicial norte-americano tem sido uma das suas iniciativas mais controversas. Os críticos afirmam que contribuíram para um aumento dos crimes violentos, transformando as cidades em paraísos perigosos para consumidores de droga e reincidentes violentos. Soros tem, no entanto, uma visão diferente. “A ideia de que precisamos de escolher entre justiça e segurança é falsa”, escreveu em The Wall Street Journal. E prosseguiu: “Estas reforçam-se mutuamente: se as pessoas confiarem no sistema judicial, este funcionará. E se o sistema funcionar, a segurança pública vai melhorar”.

Este é o cerne da ideia de sociedade aberta que anima Soros: dar a diferentes pessoas de diferentes origens uma oportunidade igual de moldar o seu mundo.

Assim sendo, o que é que se segue a Soros? Alexander, o seu filho, deixou claro que tenciona seguir as pisadas do pai. Define-se como pensador de centro-esquerda e já disse que se vai concentrar mais nas questões dos EUA, o que provavelmente significará duplicar o apoio a procuradores e funcionários locais com espírito reformista.

Mas, pouco tempo depois de ter tomado as rédeas, a OSF iniciou o processo de redução de 40% das cerca de 800 pessoas que constituem a sua força de trabalho, bem como uma mudança de foco e de afetação de recursos.

O presidente da OSF, Mark Malloch-Brown – que está a gerir esta transição –, citou o “oportunismo estratégico” e o “capital paciente” para a nova abordagem. Mas a mudança parece inspirada no plano original de George Soros para as suas fundações: serem ágeis e oportunistas, capazes de entrar em ação quando surge uma oportunidade, em vez de se fixarem em locais onde o apoio pode ser considerado garantido.

Também é claro que Soros não se vai sentar silenciosamente à margem. Previu que a Rússia vai perder a guerra na Ucrânia, o que “trará um enorme alívio para as sociedades abertas e criará problemas tremendos para as sociedades fechadas”. Tentou chamar a atenção para a rápida deterioração do sistema climático global. E vai, quase de certeza, continuar a trabalhar na Open Society University Network, um projeto internacional que se dedica à investigação e educação sobre as alterações climáticas e a lidar com governos autoritários.

Para mim, o maior impacto deste homem brilhante e irritantemente seguro de si no mundo pode ser a Universidade Centro-Europeia (CEU), que cofundou em 1991, em Budapeste. Desde então, o Governo de Orbán – que não admite a diversidade de ideias – obrigou a CEU a mudar-se para Viena. Há aqui uma certa ironia, pois a última coisa que Soros queria era um edifício para albergar as suas ideias. Mas são os produtos desta instituição que vão perdurar.

Com este texto, queria assim falar do legado de George Soros, anda que este não o faça, já que a defesa da democracia é um projeto que nunca pode terminar. Como Soros disse em 2020: “A sociedade aberta está sempre em perigo e cada geração deve lutar pela sua sobrevivência”.

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