Qual é a melhor maneira de lermos estas JMJ realizadas na foz do rio Trancão com o rio Tejo, mesmo à beira desse mar da Galileia chamado Mar da Palha? A meu ver, temos de virar a Bíblia ao contrário, temos de começar no Apocalipse e acabar no Génesis.
Eu nasci e cresci muito perto daquele local que agora se chama Campo da Graça, Parque Tejo ou Parque Urbano da Bobadela, a fronteira entre Lisboa e Loures. Agora há ali uma ponte e ligação entre os arrabaldes e a cidade, mas no meu tempo havia uma alfândega; só víamos e sentíamos muros invisíveis e visíveis entre nós, os da periferia, e eles, os da cidade. E o maior muro era mesmo o rio Trancão, que era um horror apocalíptico de poluição e desleixo. O cheiro era nauseabundo, uma mistura de dejetos humanos e descargas químicas da velha indústria. As margens eram montes de esterco. Não, não era lodo, era esterco e poluição das inúmeras fábricas onde a minha gente trabalhava. Sair da miséria do campo e ter melhores condições de vida tinha um preço alto: viver à beira de um cenário apocalíptico; o Trancão era na época o rio mais poluído da CEE. Mas sabem o que é ainda mais revelador? Eu não me lembro de vivermos indignados com este cenário desumano no aspeto e no cheiro; também não contestávamos o ruído dos aviões por cima de nós. Era assim, vivia-se assim. Os mujiques das margens habituam-se a tudo. O pivete hediondo do Trancão era visto como algo natural como as chuvas do inverno, como aquelas de 67. Em 1967, dezenas ou centenas de corpos deslizaram pelo Trancão até ao Tejo, incógnitos, clandestinos.
É por isso que vos digo uma coisa: se me dissessem em 1989 ou 91 ou 94 que a foz do Trancão iria ser um dia palco de um acontecimento magnífico como as JMJ, a minha resposta só podia ser um óbvio, Vai gozar com outro! Naquela época, a foz do Trancão só podia ser cenário para um Walking Dead ou um Mad Max.
É por este motivo que estranhei o silêncio dos responsáveis da JMJ sobre este assunto; estranhei que não tivessem puxado a narrativa do evento para este ponto tão católico: onde antes havia morte, poluição e esterco, há agora beleza, esperança e ligação; ligação cívica entre lisboetas e saloios, ligação ecológica entre pessoas e rio. E esta ligação há muito que era um direito! Nasci talvez a 300 metros do Tejo, mas nunca tive direito ao rio; havia entre o meu bairro e o rio um muro intransponível de estradas, linhas, contentores e poluição. As coisas começaram a mudar em 98, limparam o Trancão e os seus afluentes, o Rio de Loures e a Ribeira de Frielas, um tríptico ribeirinho escondido e por descobrir a norte de Lisboa; mas a Expo98 só ficou do lado de Lisboa, não passou para o lado dos pobres. Ou seja, tivemos de esperar mais um quarto de século para que a cidade fizesse justiça a todos aqueles bairros da margem norte, Camarate, Sacavém, Moscavide, Portela de Sacavém, Bobadela, São João da Talha, Vale Figueira, Portela da Azóia, Bairro das Maroitas, Bairro do Estacal Novo, Bairro do Mealheiro, Bairro das Cachoeiras, Pirescoxe, Santa Iria, Via Rara, e até Vila Franca, o velho povo dos esteiros. Agora quem lá vive tem finalmente direito ao Tejo por inteiro e, por arrasto, sente-se parte da cidade, coisa que nós nunca sentimos. Estávamos a 1 km de Lisboa, mas pareciam 100km. Esta obra dá-nos agora finalmente o direito à cidade, há finalmente uma margem norte unida entre Belém e Santa Iria. Choro de raiva, por ter demorado tanto tempo, mas choro sobretudo de esperança e renovação. Recomeçar é sempre possível. Se é possível surfar com amor o Trancão, então caramba!, nada é irreformável.
Uma das palavras que me faz ser católico é mesmo esta: renovar, recomeçar, reerguer - o verbo de Francisco. Esta parte da cidade, outrora uma infame e poluída foz entre um afluente apocalíptico, Trancão, e um mar morto, o Tejo, recomeçou o seu caminho com mais respeito pela ecologia e pelos mais pobres. O que era literalmente uma treva é hoje um raio de luz que deu uma energia inédita ao país neste século, e que foi de certeza um raio de luz no mundo, um esboço do Quinto Império de um dos grandes jesuítas da história do catolicismo, o nosso Padre António Vieira. O Quinto Império é isto, meus amigos, é esta irmandade entre pessoas dos quatro cantos do mundo que surge sem esforço, um laço orgânico e inexplicável pela racionalidade fria e mecânica, uma paz, um abraço que nasce na ideia de que somos irmãos antes de tudo. “Não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher, porque todos vós sois um em Cristo”, diz S. Paulo na Carta aos Gálatas (3, 28).
Esta sensação de irmandade utópica vivida nestes dias não sobreviverá intacta ao regresso à realidade, mas espera-se que sobreviva o suficiente no coração destes jovens para que consigam fazer uma coisa decisiva: se a utopia vivida nestes dias é impossível deste lado da Criação, é contudo possível evitar uma descida negra aos infernos, é sempre possível diminuir o grau de anarquia do mundo; ou seja, se é impossível construir o Bem celeste aqui na terra, é possível evitar o mal absoluto através de muito trabalho e dedicação. A impossibilidade do paraíso não valida o cinismo.
E, nesta perspetiva do recomeço, é importante também reconstruir a Igreja, como tem pedido Francisco. Todos, mas mesmo todos, merecem recomeçar. Os divorciados e/ou recasados merecem recomeçar, não são menos do que os que permanecem casados. Não, os sacramentos não podem ser os punhais dos fariseus. As pessoas homossexuais e transsexuais também podem recomeçar dentro da igreja, que, além de ser um hospital de campanha, é uma casa sem portas, só tem umbrais. A igreja tem de deixar de lado a obsessão com a sexualidade, coisa que Jesus não tem como prioridade. Ele não veio cá falar de cama. Da mesma forma, não é possível conceber um futuro para a Igreja sem padres livres para casar (celibato como opção) e com mulheres com outro poder dentro da estrutura. Em países tão marianos, como é que se pode continuar a fechar a porta do clero às mulheres? Não faz sentido. Uma mulher deve ter o direito de ser um padre, não há como fugir a isto. A igreja tem de ser um cais onde todos sem exceção podem atracar. É essa a grande onda do Trancão, é essa a onda de Francisco.
E, já agora, Portugal também só faz sentido como cais. Estas JMJ mostram de novo que temos um sentido cosmopolita inato, o resultado de cinco séculos de aventura além mar. O tal Quinto Império também pode ser "só" isto: uma discreta mas fortíssima capacidade de acolhimento e para nos misturarmos com os outros povos sem grande esforço; nós não somos apenas simpáticos e corteses; um povo cortês pode ser distante. Nós misturamo-nos, o que é diferente. É por isso que digo que o futuro de Portugal, e do Mundo, já agora, só pode ser o caminho do mulato, da mistura. O que me leva às JMJ Coreia 2027. O catolicismo do Oriente é em grande medida resultado dos missionários portugueses, sobretudo jesuítas. Há 500 anos, jesuítas saíram de Lisboa para evangelizar o Oriente. Agora, o primeiro Papa jesuíta faz com que as JMJ saltem do extremo ocidente, Lisboa, para o extremo oriente, Seul. O mundo muda, mas há uma constante.