Opinião

Vão morrer mais

Vão morrer mais

Henrique Burnay

Consultor em Assuntos Europeus

O naufrágio de mais um barco de migrantes no Mediterrâneo é uma tragédia repetida. E recorda como é difícil resolver o problema. Se aceitarmos mais, os partidos anti-imigração serão reforçados. Se ajudarmos menos, haverá mais mortes

O naufrágio de um barco com migrantes e a morte de mais de 80 pessoas junto à costa da Grécia, na semana passada, foi terrível. Mais uma vez. Mas nem os que propõem facilitar a entrada a todos, nem os que querem impedir qualquer entrada, vão conseguir salvar muitas vidas.

A Europa precisa e deve receber melhor. E, em muitos caos, mais. Mas há demasiados europeus que não querem receber ninguém. E os países da União Europeia também precisam de poder controlar as suas fronteiras. Faz parte das expectativas da soberania. Mas há muita gente legitimamente disposta a tudo para tentar a sua sorte. Isto não tem, portanto, uma solução fácil.

Ainda não é claro o que aconteceu ao barco que naufragou. Pelo menos uma ONG diz que passageiros a bordo do navio de pesca terão pedido socorro. A Guarda Costeira grega garante que fez o que podia e que não poderia ter tentado intervir mais cedo, contra a vontade do comando da embarcação. Em 2015, no caso mais dramático conhecido até hoje, foi na tentativa de salvamento que o naufrágio aconteceu.

Mas mesmo que as autoridades gregas tenham feito tudo o que podiam e deviam, o facto de uma reportagem ter, recentemente, mostrado a Guarda Costeira grega a enviar migrantes à força para o mar, de volta em direção à Turquia, faz muitos duvidarem dos métodos e das intenções gregas. Tal como em Itália, onde as autoridades acusam as ONG de se precipitarem no resgate de barcos cujos passageiros fazem chegar a Itália, que tem o subsequente dever legal de os acolher.

Enquanto dezenas de milhares atravessam e milhares morrem a tentar a travessia, há muito pouco acordo.

Segundo dados recentes apresentados pela Associated Press, “Itália registou a grande maioria das chegadas “irregulares” à Europa este ano. Até agora, 55.160. Isto é mais que o dobro dos 21.884 que chegaram no mesmo período, em 2022, e 16.737, em 2021. O maior número de chegadas vem da Costa do Marfim, Egito, Guiné, Paquistão e Bangladesh”.

Esta informação é triplamente relevante. Indica que as pessoas que chegam não vêm maioritariamente de países em situação de risco na fronteira da Europa, que a maioria das entradas se faz por um número muito limitado de países e que estas são pessoas que fazem um esforço enorme, mesmo sabendo que pode ser fatal. E isso diz-nos muito sobre a determinação e necessidade de vir.

Quase ao mesmo tempo que esta tragédia se desenrolava no Mediterrâneo, os Estados membros da União Europeia chegavam a uma tentativa de acordo sobre o tema. Resumidamente, simplificar processos à entrada, quer para aceitar quer para recusar asilo, repatriar mais e distribuir quem chega pelos Estados membros que não estão na fronteira. Ou, caso esses Estados não queiram acolher, alternativamente contribuírem com 20.000 euros por pessoa para apoiar quem recebe na Europa, ou antes destes migrantes chegarem ao lado de cá. Mas o acordo é frágil.

Há uma tensão praticamente insanável entre os que querem uma política generosa e os que querem uma política de recusa de quase todos os que tentam chegar. E essa tensão, quando chega à hora de votar, tende a dar argumentos eleitorais aos que são contra o acolhimento. Ignorar isso é irrealista.

Na Polónia, por exemplo, o partido do governo fala em fazer um referendo. O objetivo é óbvio: associar a oposição à permissividade com a imigração e capitalizar eleitoralmente o sentimento hostil aos migrantes.

O que se passa na Polónia – assim como o que se passa nos países nórdicos, e não apena nos liderados por partidos de direita – é muito mais do que o problema de um partido. É um problema de eleitores. O facto de um partido usar o tema significa que o assunto tem relevância eleitoral. E o verdadeiro problema é esse. O outro, por mais obsceno que seja, é um sintoma.

A situação, sem solução óbvia, é quase clara. Há milhares dispostos a tudo, incluindo arriscar a vida, para chegar à Europa. Uns serão refugiados. Outros, são pessoas que fazem tudo o que podem para ter e dar uma vida melhor aos seus. Como muitos antes deles fizeram, incluindo portugueses. Como disse Roberta Metsola, a presidente do Parlamento Europeu, a André Ventura, quando foi ao Parlamento português, “não se esqueça disto: para milhões de pessoas ainda é mais seguro embarcar e enfrentar a morte (…) Estamos a falar de pessoas”.

O dilema que se coloca é que se não se salvarem vidas no Mediterrâneo, morrerão mais. Se se salvarem, como é dever de países que respeitam as regras mais básicas de humanidade, sem fazer mais nada, os traficantes continuarão a vender lugares nesses barcos que muitas vezes não chegam ao destino. Se deixarmos entrar mais gente, os eleitores que se opõem às migrações reforçarão os partidos à extrema. Se não deixarmos, as pessoas tentarão entrar. Muitas entrarão, outras continuarão a morrer a tentar. O que não podemos aceitar sem um peso insuportável na nossa consciência política.

Podemos procurar controlar melhor as rotas, ser mais rápidos na gestão dos processos de quem chega e pede asilo, ter canais para a imigração regular e acordos de repatriamento. Mas não resolveremos nada se não reconhecermos que, faça-se o que se fizer, não ficará tudo resolvido. E se não combatermos o discurso que alimenta o ódio aos imigrantes. Sem isso, nem o mínimo decente será aceite.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate