Sempre me incomodou ouvir colegas advogados dirigirem-se ao Tribunal, antes de intervirem em julgamento, não sem antes suplicar “Com a devida vénia”. Ora, num tribunal democrático, ninguém deve usar o genuflexório e prestar vassalagem a quem apenas assume esse dever máximo de administrar a Justiça em nome do Povo. Aliás, a própria arquitetura da maioria das salas de tribunal reflete bem essa iconografia entre quem detém o poder – que permanece, altivo e altaneiro, tantas vezes, juntamente com o Ministério Público, num palanque mais alto do que os próprios advogados – e aqueles que, por necessitarem, a ele recorrem – os cidadãos e as empresas, que são partes interessadas, ou as testemunhas que colaboram com a Justiça e que são forçados a olhar para ela, de baixo cima para cima.
Esta simbologia revela bem uma certa mentalidade ainda enraízada na sociedade portuguesa: confunde-se respeito e consideração com servilismo e rendição. Sem prejuízo de uma nova geração de magistrados, que veio descontruir esta perspetiva, assim era nos tribunais do Estado Novo. E ainda é assim, lamentavelmente, em largos setores das universidades portuguesas.
Também no mundo académico se usa e abusa do “Com a devida vénia”. A introversão endogâmica do sistema, fundado numa avaliação pelos pares, aconselha a manter a cabeça baixa. A reproduzir o que o “Mestre” debita. Ao elogio recíproco, sempre na expetativa de se vir a receber a paga pela expressão pública do reconhecimento alheio. Na esperança de, mais tarde – quando já se estiver aculturado e quebrado –, se suceder na cátedra, herdada segundo o rito da sucessão dinástica. Nisto, esvai-se o espírito crítico. O autodesafio. A capacidade de inovação.
Objetivamente, não se pode ser livre (academicamente ou em qualquer outra profissão) se houver dependência económica. Ora, nos dias que correm, esse é o principal problema da academia portuguesa. Um/a professor/a auxiliar, com mais de 10 (dez) anos de doutoramento e, tantas vezes, mais de 20 (vinte) anos de ensino, recebe pouco mais de 1.500 € (mil e quinhentos euros) líquidos. Cerca de 1.900 € (mil e novecentos euros), se estiver em exclusividade. Um/a jovem assistente convidado/a recebe pouco mais que 700 € (setecentos euros) líquidos. Como se vive assim? Como se come? Como se pagam as contas? Como se compram livros? Como se viaja para aprender e participar em conferências científicas? Como se é livre para discordar? Para pensar?
E o mesmo se diga das/os estudantes e aspirantes a futuras/os profissionais. Principalmente, aquelas/es que estudam deslocadas/os das suas terras de origem. A entrada no mercado de trabalho amedronta-os e leva-os a tolerarem – quando ocorrem – o arbítrio, a ridicularização e o achincalhamento. Sempre na vã esperança de, mais tarde, serem iniciados, pelos que delas/es abusaram, nesse ecossistema ritualizado em que funciona um mercado de trabalho dominado por quem já lá está.
Acresce que, apesar de o Estatuto da Carreira Docente Universitária (cfr. artigo 84.º) determinar que o número de professores catedráticos e associados deve representar entre 50% e 70% do total de professores, as sucessivas políticas austeritárias de corte de despesas no Ensino Superior – que ainda envolvem, por exemplo, a impossibilidade de subida da massa salarial em mais de 3% por ano – tem conduzido a um aumento exponencial de professores auxiliares, que permanecem estagnados, no primeiro degrau da carreira académica. De acordo com o Relatório divulgado, em 2018, pela Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, enquanto, em 2008, havia 4.660 professores catedráticos e associados, representando 21,5% do total de docentes universitários, em 2018, reduziram-se (por força de aposentações sucessivas e cessação de vínculo) a 4.409, equivalendo a apenas 20,4%. Isto significa que quase 80% dos professores universitários ainda precisam de se submeter a procedimentos concursais de progressão na carreira, em que são avaliados por colegas que exercem posições de direção e coordenação. Esta violação gritante da lei reforça, em muito, a dependência dos docentes menos antigos face aos demais e estimula a submissão acrítica, a endogamia e o favoritismo.
Como sobrevivem, então, professores universitários em início de carreira e alunos? Muitas vezes, através de bolsas, apoios vários e outros trabalhos que lhes vão sendo distribuídos por quem controla e gere centros de investigação, onde, através da fuga às regras do Direito Público, se gera o lucro que as universidades não estão autorizadas a realizar. Ou, em áreas científicas que permitem uma colaboração prática com o setor privado (ex: Direito, Engenharias, Economia e Gestão), através da atribuição de estágios remunerados ou da contratação para desempenho de funções em empresas, escritórios de advogados e tribunais arbitrais, como meros (mas gratos) auxiliares dos professores que dominam cada academia. Ou através da troca de pareceres técnicos ou do desempenho de funções de árbitros, para os quais se recomendam reciprocamente.
Note-se, aliás, que, em muitas instituições de ensino superior, um número muito significativo dos docentes são apenas convidados, correspondendo a uma média próxima dos 43%. Isto é, não têm vínculo definitivo. O que os obriga a ter contratos renováveis anualmente, que podem cessar a todo o tempo, caso a sua conduta seja entendida como perturbadora do sistema instituído. Mais do que isso: estes docentes convidados votam para a escolha dos órgãos das instituições de ensino superior. O que significa que se transformam num poderoso sindicato de voto que alguns podem tentar instrumentalizar – mediante ameaças veladas de não renovação, distribuição de prebendas e atribuição de bolsas e apoios monetários –, com vista a obter o apoio que já não conseguem reunir junto dos docentes que têm vínculo definitivo e que, portanto, são bem menos propensos a ceder a tais pressões. Não são raros os casos de docentes universitárias/os precárias/os que recusam fazer parte de listas internas de oposição à maioria dirigente com o argumento de que ainda aguardam nomeação definitiva ou o resultado de determinado concurso.
Pode alguém ser livre quando depende economicamente de outrem? Ainda por cima quando quem é causador e indutor da dependência económica a/o vai avaliar e pode prejudicar a respetiva progressão na carreira?
Julgo ter ficado clara a razão do silenciamento, do medo e da incapacidade de reagir, por parte de quem é alvo de abusos sucessivos. Refiro-me, também, ao assédio sexual, mas penso, principalmente, no (muito mais frequente) abuso de poder, que se traduz em assédio moral. Que, segundo um inquérito recente, afeta ou já foi testemunhado por 55% (!) dos docentes universitários. A sua verdadeira causa reside na enorme desproporção entre o poder de quem se encontra instalado e aqueles que são forçados a tolerar o autoritarismo, o vedetismo e o culto da subserviência, na (inocente) esperança de, um dia, poderem ser elas/eles a estar na posição das/os que oprimem. É nesse lodaçal que medra o abuso.
O assédio nasce sempre dessa desigualdade entre quem abusa e quem é abusada/o. Reinterpretando a velha máxima de Oscar Wilde, “Tudo no mundo é sobre sexo, menos o sexo. Sexo é sobre poder”, dir-se-ia que a despersonalização e a degradação do outro, através do assédio (sexual, mas também moral), é sempre um problema de poder. Ou de abuso de (pretenso) poder.
Assim sendo, é fundamental que se garanta a transparência do funcionamento das instituições universitárias. Que estas se abram ao mundo. Que prestem contas. E que as suas salas de aulas, corredores e gabinetes se tornem em espaços seguros de transmissão e troca pluralista de conhecimento. Para isso, é preciso que haja canais de denúncia operacionais e eficazes. Que se garanta que as/os denunciantes não são perseguidas/os e prejudicadas/os. Que se disponibilize formação pedagógica aos docentes. Que se adotem orientações claras sobre como agir, mediante aprovação de manuais de boas práticas.
E que não se feche os olhos. Que não se julgue que pode esconder-se a cabeça na areia até a pressão mediática passar. Que não se persiga quem tem a coragem de denunciar. E que nunca se coloque a reputação da instituição à frente de quem verdadeiramente importa: aquelas/es que foram alvo de abuso.
Agora sim, com a devida vénia a quem tem a coragem de erguer a sua voz, chegou a hora de as universidades e os institutos politécnicos portugueses levarem a sério os direitos e liberdades individuais de alunos, professores e funcionários.
E, principalmente, de levarem a sério a sua missão: contribuir para o progresso e o desenvolvimento do país, dando o exemplo e transformando-o num lugar digno de se viver.
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