Opinião

Comprar com o pelo do cão quando a TAP não tinha pelo?

Os ditos fundos Airbus foram utilizados exclusivamente pela TAP no pagamento de salários e nas suas necessidades de tesouraria. Na verdade, tais fundos, em conjunto com as outras prestações acessórias e o empréstimo da Azul, salvaram a TAP de uma insolvência imediata

Sou um empresário com mais de 30 anos de experiência na aviação. Fundei várias companhias áreas de sucesso continuado em diversos países e em mercados altamente competitivos.

No início de 2015, fui contactado pelo Governo português para me convidar a concorrer à privatização. Eu não conhecia Portugal e depois de uma análise à TAP rapidamente concluímos que se encontrava numa situação financeira de absoluta emergência: era uma empresa falida, completamente descapitalizada, sem tesouraria e em risco de não conseguir pagar salários. O contexto era ainda mais desafiante uma vez que, pelas regras europeias, o Estado português estava impedido de colocar mais um euro na TAP. Os bancos portugueses já não aceitavam financiar mais a TAP e por motivos facilmente compreensíveis: o peso da dívida tinha-se tornado incomportável — cerca de 11x EBITDAR. A empresa estava sem acesso a meios de liquidez.

A somar à rutura financeira iminente, a TAP confrontava-se com um grande problema adicional que impedia o seu crescimento e a sua sobrevivência: tinha uma das frotas mais envelhecidas da Europa.

O Projeto Estratégico para a TAP apresentado pelo consórcio Gateway (composto pelo comendador Humberto Pedrosa e por mim) era muito claro e constava da proposta entregue ao Governo português: tinha como pilar a renovação da frota da TAP. Tal renovação não era uma condição da privatização, mas antes um elemento diferenciador, uma “exigência” da nossa proposta, por considerarmos que era absolutamente crítico para o futuro da companhia.

A negociação com a Airbus foi complexa, mas bem sucedida, devido aos meus conhecimentos no sector da aviação e à confiança que depositava no nosso Projeto Estratégico, na nossa equipa de gestão e no meu track record empresarial.

É neste contexto que avançámos com a proposta de aquisição de 53 novas aeronaves Airbus NEO (de nova geração e em que conseguimos que a TAP fosse a primeira companhia aérea do mundo a receber estes aviões), que permitiriam — e permitiram — à TAP uma maior eficiência energética, expandir-se para novos mercados e ser competitiva.

Fomos muito claros no sentido de que a anterior encomenda da TAP à Airbus — relativa aos 12 Airbus A350 — não seria compatível com o Projeto Estratégico apresentado, por serem aviões maiores, menos eficientes e em pouca quantidade para as necessidades de uma nova TAP.

É completamente falso dizer que a encomenda dos 12 Airbus A350 tinha valor económico para a TAP e facilmente se percebe porquê: por um lado, a TAP não tinha condições financeiras para pagar essa compra, uma vez que estava totalmente descapitalizada: não tinha fundos para pagar salários, muito menos para honrar as prestações relativas à compra de novos aviões. Por outro lado, a TAP não podia ceder, transferir a terceiros ou monetizar essa posição contratual, pois, para isso, necessitaria do acordo da Airbus. Ora, a Airbus confirmou por escrito, numa carta que foi do conhecimento da Parpública e, consequentemente, dos Governos, a sua indisponibilidade para aceitar tal cedência e referiu que, em caso de default, situação provável face às graves dificuldades da companhia, faria cessar os contratos, apropriando-se do sinal pago pela TAP.

Quanto à encomenda dos novos aviões NEO que o consórcio Gateway conseguiu para a TAP, também não é verdade que não tenham sido adquiridos a preços de mercado, como demonstram as nove avaliações independentes (três por cada modelo de avião) exigidas pelo Governo de então.

Também é totalmente absurdo dizer-se que as ações da TAP foram compradas com os fundos Airbus ou com cash flows futuros da TAP. Em 2015, a TAP valia 0 (zero) euros ou, para ser mais claro, tinha um valor negativo, até menos quatrocentos milhões de euros, como atestam algumas avaliações feitas à empresa, na preparação da privatização, por auditores internacionais (Deloitte e PWC) a pedido do Governo.

Ainda assim, para demonstrar o nosso compromisso com o processo de privatização, o meu sócio Humberto Pedrosa e eu próprio, através da Atlantic Gateway, aceitámos pagar, com fundos próprios, o preço de 10 milhões de euros por 61% do capital social da TAP. Além disso, ambos contribuímos com prestações acessórias no montante de 15 milhões de euros para a TAP.

E a somar a tudo isso, conseguimos garantir um empréstimo da Azul em condições muito favoráveis para a TAP, no montante de 90 milhões de euros, com amortização e juros a vencer apenas no final da maturidade. Recordo que este empréstimo ainda não foi reembolsado e que uma das condições exigidas, pelo Governo, para a minha saída da TAP foi que tal empréstimo deixasse de poder ser convertido em capital, o que a Azul aceitou.

Mas, voltando aos ditos fundos Airbus (226 milhões de dólares de prestações acessórias), eles foram utilizados exclusivamente pela TAP no pagamento de salários e nas suas necessidades de tesouraria. Na verdade, tais fundos, em conjunto com as outras prestações acessórias e o empréstimo da Azul, salvaram a TAP de uma insolvência imediata. Conseguimos tudo isto para uma empresa que, repito, à data, tinha uma avaliação muito negativa.

Para assegurar a estabilidade dos ditos fundos Airbus e a sua natureza de capitalização, fomos para lá das exigências legais e aceitámos, nos Estatutos da TAP, que os 226 milhões de dólares não poderiam ser reembolsados à Gateway pela TAP, em caso algum, antes de um prazo de 30 anos. Tanto quanto sei, ainda lá estão e passaram para as mãos do acionista Estado que, entretanto, até os terá convertido em capital.

De resto, se dúvidas pairassem sobre o negócio da renovação da frota com a Airbus, naturalmente que não teria sido possível à TAP, no final de 2019 e sob a nossa gestão, realizar emissões obrigacionistas no valor de 575 milhões de euros (sem garantia do Estado!), subscritas por bancos internacionais de primeira linha depois de due diligence à empresa.

Além disso, poucas semanas antes da pandemia, no início de 2020, um dos grandes players europeus da aviação apresentou-nos uma proposta para adquirir uma participação de 20% na TAP, na qual avaliava a empresa em quase mil milhões de euros, após um outro exigente processo de due diligence. Alguém concebe que essa proposta teria surgido se os preços contratualizados para a renovação da frota da TAP estivessem fora dos standards de mercado?

O Projeto Estratégico proposto pelo consórcio Gateway, incluindo a parte da capitalização com os fundos Airbus e a renovação da frota, foi detalhadamente apresentado, explicado, discutido e aprovado por todos os intervenientes no processo de privatização, tanto na fase de negociações da venda, como mais tarde, aquando da reversão parcial da privatização levada a cabo pelo Governo socialista, que aceitou vincular-se ao nosso Plano Estratégico, enquanto acionista.

Finalmente, é bom recordar que, no processo de privatização, tinha ficado previsto que, dois anos após a compra de 61% da TAP, a Atlantic Gateway adquiriria os restantes 39% já com preço acordado, pelo que passaríamos a deter 100% da TAP. Alguém pensa que poderíamos querer prejudicar a TAP com custos inflacionados, quando iríamos detê-la na totalidade? Ou será que também fomos nós a sugerir ao Governo a reversão da privatização?

Sem qualquer modéstia e com os factos a demonstrá-lo claramente, a intervenção da Atlantic Gateway na TAP em 2015 e nos anos que se seguiram sob a nossa gestão até à pandemia não só impediu a falência da companhia bandeira do país como a fez crescer.

Em resultado dos quase cinco anos da nossa gestão executiva na TAP até à covid-19, a companhia não precisou de um euro do Estado português e diminuiu brutalmente a exposição do Estado à dívida da TAP pré-privatização: a TAP amortizou à banca nacional cerca de 400 milhões de euros, tendo a sua dívida financeira passado para menos de metade da existente no período pré-privatização, ou seja, a dívida passou a ser de 5x o seu EBITDAR. Acresce que, em fevereiro de 2020, a TAP apresentava uma situação de tesouraria sólida de cerca de 440 milhões de euros, o que lhe permitiu ser uma das últimas companhias a nível mundial a ser auxiliada financeiramente perante a pandemia.

Também durante a nossa gestão, o número de voos subiu 21%, aumentámos o número de destinos de 81 para 94 (6 dos novos destinos no supercompetitivo mercado norte-americano, que passou a ser uma grande alavanca do turismo português) e o volume de negócios cresceu 39%, com resultados operacionais positivos no segundo semestre de 2019. Tudo isto acompanhado por uma paz social, que evitou qualquer greve durante o período da nossa gestão.

A nossa equipa transformou uma empresa à beira da falência num grupo empresarial revigorado do ponto de vista financeiro, dos seus recursos humanos e com uma frota moderna e preparada para o futuro.

Por motivações ideológicas, o Estado português, perante os impactos sem precedentes da pandemia, decidiu sujeitar a TAP a um plano duríssimo de resgate e reestruturação. E digo decidiu, porque havia alternativas a esse plano, que foram afastadas por decisões políticas.

Tive muita pena que o Governo tivesse optado pela solução de “impor” a nossa saída sob ameaça da nacionalização. Tal não ocorreu em nenhuma das congéneres europeias, onde nenhum dos acionistas privados foi chamado a injetar capital. Muito pelo contrário: tiveram o apoio dos respetivos Estados e já estão a reembolsar os empréstimos recebidos (alguns já na totalidade).

Não fosse a pandemia e as decisões políticas tomadas, hoje teríamos a TAP com muito menos apoio dos contribuintes portugueses e, muito provavelmente, já com parte do seu capital reembolsado ou colocado num dos grandes players europeus.

Depois da enorme capitalização pelo Estado português e da redução significativa dos salários que ainda penalizam os trabalhadores da TAP, espero que a companhia consiga definitivamente ser privatizada. Até porque, agora sim, a TAP tem pelo, à custa dos contribuintes e dos seus trabalhadores.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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