Opinião

A cadela Pantufa e outros bichos de pouca sorte

A cadela Pantufa e outros bichos de pouca sorte

Jorge Pereira da Silva

Constitucionalista, professor da Escola de Lisboa da Faculdade de Direito da Universidade Católica

Afinal, os animais não estão ausentes da Constituição. Só é preciso saber procurá-los e não confundir a Constituição com o seu texto

Para tudo na vida é preciso ter alguma sorte. A cadela Pantufa não teve nenhuma. Nem na vida, nem na morte. Acabou os seus dias num sofrimento atroz, depois de esventrada pelo seu dono que, a pretexto de lhe fazer uma cesariana, acabou por deitar as crias ao lixo, algumas delas ainda com vida.

Condenado o dono da Pantufa pelo crime de maus-tratos a animais de companhia, previsto no artigo 387.º do Código Penal, houve recurso para a Relação de Évora e daí para o Tribunal Constitucional.

Para surpresa geral, em finais 2021, a 3.ª secção deste Tribunal decidiu, por maioria, que a Constituição portuguesa não permite a criminalização de condutas como a do dono da Pantufa, porque não existe no seu texto nenhuma referência explícita aos animais.

Esta conclusão surge suportada numa conhecida teoria segundo a qual todos os crimes porque têm como consequência potencial a privação da liberdade de quem os comete só podem ser justificados pela salvaguarda de um bem jurídico com claro assento constitucional. E, ao contrário do que sucedeu com a Lei Fundamental alemã, a cujo artigo 20-A, sobre os fundamentos naturais da vida, foram acrescentadas três palavrinhas “e os animais” , tal não aconteceu até ao momento com a Constituição portuguesa. Para o Tribunal Constitucional, portanto, ou o Parlamento revê a nossa Constituição ou o crime de maus-tratos a animais de companhia não poderá subsistir enquanto tal.

Quando fruto de investigação académica e reflexão séria, as teorias jurídicas são importantes. Em particular, a teoria invocada é fundamental para evitar a banalização do direito criminal, ao sabor das tendências da moda. Mas devemos também ter a humildade de reconhecer que, se as teorias que professamos conduzem a resultados manifestamente desajustados, é porque falhámos em algum momento. Seja na formulação da própria teoria, seja na sua aplicação prática. Até a melhor das teorias pode ser levada longe demais.

Em decisões posteriores, porém, o Tribunal Constitucional reiterou o sentido da sua decisão de 2021 e outros atos bárbaros perpetrados contra animais de companhia ficaram por punir.

Por isso, na semana passada, o Ministério Público solicitou a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do artigo 387.º do Código Penal. Se até ao momento as decisões proferidas se referiam a casos concretos o da Pantufa e de outros bichos de pouca sorte , o que o Tribunal Constitucional tem agora em mãos é o afastamento da ordem jurídica do crime de maus-tratos contra animais.

É preciso parar para pensar. Ao contrário do que sustentam alguns dos juízes do Palácio Ratton, os animais não estão ausentes da Constituição. Só é preciso saber procurá-los devidamente e, sobretudo, não confundir a Constituição com o seu texto. Quase a fazer 50 anos, a Constituição de 1976 é muito mais do que umas palavrinhas a mais ou a menos, no artigo x ou no artigo y, aditadas ou não em sede de revisão constitucional.

Nenhuma Constituição sobrevive fechada sobre as suas próprias palavras, refém de teorias sofisticadas que a comunidade nunca compreenderá. A Constituição portuguesa também vive nas decisões dos tribunais comuns, nas reformas mais profundas do direito civil, na evolução da literatura jurídica, nas descobertas científicas sobre os animais, nos próprios movimentos sociais. A Constituição é devir, pelo que muda com a realidade a que se aplica. A Constituição é projeto, pelo que deve estimular as transformações sociais positivas em vez de as bloquear.

Por tudo isto, os animais estão seguramente presentes na Constituição. Nem é preciso ir muito longe. Podemos começar logo pelo artigo 1.º: Portugal é uma República baseada na dignidade da pessoa humana, empenhada na construção de uma sociedade mais justa e solidária.

Afinal, não estamos sozinhos no mundo. A natureza não existe apenas para nos servir. Os animais não estão aqui apenas para trabalhar, para nos prover alimento, para nos deslumbrar com a sua beleza, para nos fazer companhia. Temos indeclináveis deveres éticos e jurídicos para com eles.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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