Opinião

Radicalização da lei da eutanásia

Radicalização da lei da eutanásia

Jorge Pereira da Silva

Constitucionalista, professor da Escola de Lisboa da Faculdade de Direito da Universidade Católica

Na versão primitiva da lei, a eutanásia era uma forma de “antecipação da morte”. Na versão hoje submetida ao Tribunal Constitucional, a eutanásia só antecipa a morte porque todos nós, um dia, iremos morrer

Enquanto o país assiste ao desfile de ministros e secretários a caminho do cadafalso, chegou ao Tribunal Constitucional a terceira versão da lei da eutanásia.

A primeira foi chumbada pelo Tribunal Constitucional em março de 2021. A segunda foi vetada politicamente pelo Presidente em finais do mesmo ano. De tão desastrada que era, nem se justificava enviá-la para fiscalização preventiva. Já a terceira versão acabará também, com grande probabilidade, por ser declarada inconstitucional.

Não por acaso. A lei que agora foi submetida ao Tribunal Constitucional não é apenas substancialmente diferente da que foi chumbada em 2021. Ela é muito mais radical. O universo de casos passíveis de uma decisão de eutanásia legal é muitíssimo mais alargado.

Não adianta tentar passar a mensagem de que a Assembleia da República apenas corrigiu o que estava errado na lei de 2021. Isso não é de todo verdade. Aproveitando o mesmo articulado, é certo, foram feitas alterações estratégicas ao diploma original que representam uma mudança clara de paradigma. Onde antes se podia falar com alguma propriedade de “morte medicamente assistida”, o modelo agora desenhado aproxima-se dos regimes de “morte a pedido”.

O conceito-chave da versão originária da lei, que abria a porta à eutanásia não punível, era o de “sofrimento intolerável”. O Tribunal Constitucional aceitou-o como válido, com o seguinte argumento: “afirmar que o sofrimento é um fenómeno privado não significa que esteja à margem de qualquer objetivação, ou que seja inapreensível por terceiros, cingidos à aceitação acrítica – meramente empática – do relato na primeira pessoa pelo paciente”. No fundo, a verificação de uma “situação de sofrimento intolerável” deveria ser feita em diálogo entre o paciente e o médico assistente.

Porém, na versão da lei recentemente aprovada pela maioria dos deputados, o conceito de “sofrimento intolerável” foi substituído pelo de “sofrimento de grande intensidade (…) considerado intolerável pela própria pessoa”. É o doente que decide sozinho, sabe Deus em que condições. O médico nada tem a fazer, além de executar a vontade exteriorizada pelo doente. Em vez de se conformar com a decisão do Tribunal Constitucional – segundo a qual o nível de sofrimento deve, na medida possível, ser aferido objetivamente pelos médicos –, o legislador reverteu a jurisprudência firmada e consagrou a solução rigorosamente inversa.

O Parlamento, contudo, não se ficou por aqui e subverteu também o outro pressuposto que a primeira versão da lei utilizava – cumulativamente com o de sofrimento intolerável – e que o Tribunal Constitucional deixou igualmente passar incólume em 2021: o conceito de “doença incurável e fatal”, agora substituído pelo de “doença grave e incurável”.

Não é preciso ser médico para perceber que entre “doença fatal” e “doença grave” vai uma enorme distância. Nem é preciso conhecer as estatísticas para saber que, sobretudo a partir de certa idade, uma percentagem significativa da população portuguesa sofre de doenças graves e incuráveis. Não obstante, graças à medicina, essas pessoas vivem anos e anos com elas.

Na versão primitiva da lei, a eutanásia era uma forma de “antecipação da morte” – de uma morte iminente ou, pelo menos, que ocorreria a breve trecho. Na versão da lei hoje submetida aos juízes do Tribunal Constitucional, a eutanásia só antecipa a morte porque todos nós, um dia, iremos morrer.

Se conjugarmos os dois novos pressupostos da eutanásia não punível – doença grave e incurável, causadora de sofrimento considerado intolerável exclusivamente pelo próprio doente – o resultado só pode ser um: o horror.

Se a lei não for travada, milhares e milhares de portugueses tornam-se imediatamente elegíveis para efeitos de eutanásia. Ganham o direito a morrer. Mais uma vez, contra o veredicto do Tribunal Constitucional: o direito à vida “não tem uma dimensão negativa, porque ao direito de viver não se contrapõe um direito a morrer ou a ser morto (por um terceiro ou com o apoio da autoridade pública)”.

Bem podem dizer que esta lei se destina a acautelar casos extremos. Com a degradação acelerada dos serviços de saúde, com a escassez de cuidados paliativos, com cada vez mais doentes abandonados nos hospitais, o tempo se encarregará de transformar a eutanásia numa das principais causas de morte em Portugal. Sempre no estrito cumprimento dos procedimentos legais.

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