O ensinamento de uma masculinidade nociva faz com que os homens não se sintam confortáveis para falarem dessa mesma masculinidade nociva. É um círculo vicioso que acaba por degradar a sua saúde mental e até pôr em risco a própria vida
Esta crónica tem um único objetivo: mostrar como o machismo é nocivo para toda a gente. Já me foquei muitas vezes nas consequências graves que tem para as mulheres e continuarei a fazê-lo. No entanto, assim como o machismo é propagado tanto por homens como por mulheres, bem ensinadas pelo patriarcado dos homens — assunto que será explorado numa outra crónica —, também é nocivo para todos os outros géneros.
Numa primeira observação, a grande diferença no tratamento desta informação é que, enquanto se vê muitas mulheres a falarem sobre os problemas que o machismo lhes trazem, poucos homens falam abertamente sobre o efeito nefasto de terem crescido e de viverem com estereótipos machistas.
Os homens aprendem desde cedo que têm de ser homens fortes, quanto menos mostrarem sentimentos de vulnerabilidade mais fortes são, que devem ser gurus do sexo, garanhões de rua, estar sempre preparados para sexo e que para serem “um homem a sério” têm de ser heterossexuais. Este tipo de masculinidade nociva que é ensinada é comumente apelidada de masculinidade tóxica.
Desta forma, o machismo oprime as mulheres e os homens também, com o seu manual de regras a seguir para se ser uma “mulher como deve ser” e um “homem como deve ser”.
Ora, o ensinamento de uma masculinidade nociva faz com que os homens não se sintam confortáveis para falarem dessa mesma masculinidade nociva. É um círculo vicioso que acaba por degradar a sua saúde mental e até pôr em risco a própria vida. Não é por acaso, como vimos na última crónica, que 7 em cada 10 pessoas que cometem suicídio em Portugal são homens: são os que partilham menos as emoções e os que procuram menos ajuda para cuidar da sua saúde mental.
Ser um “homem a sério”
Simone de Beauvoir disse “one is not born a woman, but becomes one.” O mesmo se poderia dizer sobre os homens. O simples facto de um bebé nascer com um órgão genital masculino faz com que seja tratado com adjetivos como forte, valente; vestido de super-herói, nunca de rosa; afastado de purpurinas, para não ser maricas; com cabelo sempre curtinho; assoberbado com “já tens namorada” sem opção de masculino desde que tem 4 anos de idade. Adjetivos como “delicado” e “sensível” parecem só existir para o feminino.
Todos estes comportamentos constroem uma caixa de limitações para os homens desde tenra idade. Se eles estiverem dentro daquela caixa, sabem que serão aceites pela sociedade, não fosse a caixa produto desta mesma. Então, forçam-se a estar dentro da caixa de forma a “serem homens a sério”, para pertencer ao mundo dos fortes. Esta caixa é apelidada de “A Caixa do Homem”. A definição de Paul Kivel é fruto do seu exercício com rapazes e homens no Oakland Men’s Project.
“Homens não choram. Homens não ficam deprimidos. Homens não fazem bolos. Homens não colocam botox. Homens não usam antirrugas. Homens não usam cor-de-rosa. Homens não têm disfunção erétil. Homens nunca perdem a vontade sexual. Homens não precisam de apoio psicológico. Homens não são cabeleireiros. Homens não pintam o cabelo. Homens não são professores de educação infantil. Homens não são amas. Homens não dizem que amam os amigos. Nem dizem que amam o pai. Homens não ouvem Lady Gaga. Beyoncé. Rihanna. Jennifer Lopez. Homens não sofrem em fins de relacionamentos. Homens não sonham em casar-se. Homens não podem priorizar a paternidade em relação à carreira.” (Ruth Manus, 2022, pp. 28,29).
Tenhamos em atenção que nenhum homem nasce e escolhe ser posto dentro dessa caixa. Caixa a qual não foi criada por ele, foi criada por séculos e séculos de ensinamentos anteriores. Por esta razão, o homem não tem culpa de ter sido posto nesta caixa, mas tem a responsabilidade de sair dela, por ele e pelas pessoas que ama à sua volta. Se é um trabalho fácil? Não, não é, mas é possível. Há muitos homens que escolhem ficar na caixa, por medo, por conforto ou, a mais grave das opções, gostarem dos benefícios de superioridade que o machismo lhes dá. Pode parecer que compensa, mas não compensa nada.
Nesta linha de pensamento, quando dizem a um rapaz que não pode chorar, que um “homem a sério” não pode mostrar vulnerabilidade e emoções que o rotulem como “sensível” e “maricas”, estão a reprimir-lhe a sua humanidade, estão a reprimir o que faz dele um ser humano completo. Estão a dizer-lhe que não é ok ele mostrar quem é, para além de estarem a dizer que ser homossexual faz dele um homem menos “macho”.
Repressão, Angústia, Pressão Social = Violência
O sentimento de não pertencer é muito cruel: provoca isolamento, depressão, vontade de desassociação da realidade e consequente consumo excessivo de álcool e estupefacientes. Ao invés de falar com pessoas próximas e procurar ajuda profissional para cuidar da sua saúde mental, o “homem forte” isola-se e autodestrói-se. Porque é preferível viver deprimido e angustiado do que assumir que se está frágil, que se é fraco. Toda esta repressão leva muitas vezes à violência, quer em relação a outras pessoas, quer em relação a si mesmo.
Não é por acaso que 90% dos agressores e 90% das vítimas de homicídio são homens. Para termos uma visão mais clara e mais próxima das consequências horríveis do machismo para os próprios homens, das mais de 1061 pessoas em Portugal que puseram fim à sua vida em 2017, 74% eram homens, sendo que uma em cada dez mortes de homens com idades entre os 15 e os 39 anos resulta de suicídio. (Dados de Tiago Rolino, investigador do CES, citado por Nelson Marques).
Repare-se que isto em nada anula a violência propagada por homens contra mulheres, tantas vezes abusadas e assassinadas por parceiros íntimos em todo o mundo. São problemas oriundos do mesmo: machismo.
Deste outro lado do prisma da problemática do machismo, a noção de masculinidade tradicional ensina que o homem é superior à mulher, que este a deve controlar, ao mesmo tempo que lhe ensina que deve guardar as suas emoções. Depois explode e chega a violência. Em 2020, a violência doméstica vitimizou 32 pessoas, 27 das quais eram mulheres. No ano seguinte, das 23 mortes, 16 eram mulheres, 2 crianças e cinco homens.
Estes são alguns dos frutos da árvore venenosa que é a chamada masculinidade tóxica.
Mas será toda a masculinidade tóxica?
Fala-se muito de masculinidade tóxica, como se toda a masculinidade o fosse. Nelson Marques no seu livro Os Homens Também Choram prefere chamá-la de masculinidade tradicional, ou como alguns autores preferem chamar, “hegemónica” — expressão que pretendo adotar daqui em diante, não só nesta crónica como na minha vida.
Digo-o porque “a referência crescente a uma masculinidade tóxica gerou um equívoco nem sempre fácil de desfazer: não é o ser homem em si que é tóxico, mas sim alguns comportamentos que estes podem adotar em resultado da forma como são educados.” (Nelson Marques, 2021) Por isso, a meu ver, assim como dizemos que a feminilidade tradicional ensinada sobre o que é ser mulher é nociva, também deveríamos adoptar um vocabulário de igualdade de tratamento e começar a falar de masculinidade tradicional. Porque nem toda a feminilidade é nociva e nem toda a masculinidade é nefasta.
É possível educarmos mulheres e homens de forma igual, com as suas diferenças biológicas: ensinar homens a tratar bem as mulheres sem machismo, a falarem sobre os seus sentimentos; ensinarmos as mulheres como podem decidir por si mesmas, a dizer que não; ensinarmos ambos sobre a diversidade e como não têm de pertencer a esta ou àquela caixinha social. (Repare-se que quando nós feministas falamos de trabalharmos a igualdade tendo em conta as diferenças biológicas, queremos dizer que, por exemplo, não vamos obrigar homens cis a engravidar. Haja noção.)
Esta masculinidade tradicional é propagada em todo o lado enquanto ideal: no grupo de amigos, nos anúncios de televisão, nos filmes, na pornografia tradicional, nos produtos de higiene para homens, tanto na estética, como na variedade de cosméticos, que é tão pouca que corresponde a um mini canto das lojas. Um amigo comentou comigo a dificuldade que tinha em encontrar produtos com cheiros mais masculinos nas lojas. Poderíamos dizer que é a lei da oferta e da procura. O que eu digo é que, com certeza, haveria mais à-vontade para procurar artigos de autocuidado por parte de homens, se eles não achassem que isso faria com que as outras pessoas e eles mesmos questionassem a sua masculinidade. Não se é menos homem porque se tem a pele hidratada e um cheirinho bom de gel de banho. Antes pelo contrário! O que está errado é essa noção nociva de masculinidade.
Ora, se a masculinidade tradicional foi criada por pessoas, como toda a tradição, também pode ser desmantelada por pessoas.
O papel do Feminismo
Este capítulo vai ser rápido: se o Feminismo luta para erradicar o machismo e se o machismo é tremendamente opressor para os homens, se os homens se juntarem contra o machismo, toda a gente ganha. Homem, se lhe faz confusão dizer que é feminista, diga que é anti-machista. Quer dizer a mesma coisa e o resultado da luta é o mesmo.
Para as mulheres ficarem livres da violência que povoa todos os campos da sua vida, também os homens têm de se ver livres da Caixa em que são enfiados à força e que têm tanto medo de contrariar, por temerem ser postos de parte pelos pares. Não há nada que o ser humano procure mais do que o sentimento de pertença.
Notas finais:
Depois desta longa crónica, não vale a pena estar aqui com floreados: não é com este texto que se vai acabar com o machismo (até porque, como vimos na última crónica, há muita gente a lucrar com ele). Pode, sim, ser o início de um diálogo entre amigas/os, ou até uma conversa interna, porque todes temos algum machismo internalizado.
Termino com um convite: homens, escrevam mais sobre os problemas do machismo. Escrevam na primeira pessoa. Criem comunidades entre vocês como a Men Talks. Falem com os vossos amigos sem rodeios de homem-forte-garanhão. Falem com amigas sobre o que elas passam e o que vocês passam, com empatia, para que todas as pessoas se juntem por um futuro mais livre.
Leituras recomendadas:
Guia Prático Antimachismo — para pessoas de todos os géneros.
Edição de 2022, de Ruth Manus (com sugestões de leituras em cada capítulo), que mostra como o machismo é nocivo para todas as pessoas de todos os géneros e orientações sexuais.
Os Homens também choram — Histórias da nova masculinidade.
Edição de 2021, de Nelson Marques. Custa 3€ e é a bíblia de bem-estar mental para todos os homens. Podem encomendá-lo aqui. Façam-no.
Agradecimentos:
Um agradecimento especial ao Nelson Marques pelo incrível livro que escreveu que não só está mesmo bem escrito, como apresenta dados e coloca questões que também a mim me fizeram evoluir. Haja mais homens que falem de masculinidade e dos problemas do machismo sem medo, sem ego, com vulnerabilidade.
Obrigada a todos os meus amigos homens que partilham comigo dúvidas e angústias que o machismo traz às suas vidas. Que sejamos sempre um porto seguro emocional uns dos outros.
Obrigada à Ana Isabel Fernandes, pelo apoio incondicional e pela revisão do texto.
Nota final: este texto faz parte de um conjunto de conteúdos que o Expresso publica para falar diretamente com os leitores mais jovens e sobre aquilo que os afeta mais de perto. Se tiver dúvidas, sugestões ou críticas, envie-nos um e-mail.
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