Opinião

Lula, silêncios e a dívida democrática

Quem pensa com base nas narrativas da extrema-direita brasileira perde facilmente o fio democrático da discussão. É o que sucede a tantas figuras da direita, que hesitam em reconhecer o óbvio. E explica o sonoro silêncio da Iniciativa Liberal, o único partido português que nada disse sobre a vitória da democracia no Brasil. Haverá, a partir de janeiro, sabotagens à governação, desestabilização, boicotes. Mas como escreveu o sociólogo Ruy Braga, só Lula teria sido capaz, neste contexto, de salvar a democracia brasileira

Que a disputa no Brasil se travava entre democracia e autoritarismo era evidente. De um lado, uma ampla aliança que ia das mais importantes personalidades do centro-direita (o apoio de Fernando Henrique Cardoso e o lugar de Alckmin como vice são dois símbolos desse entendimento) até todas as matizes da esquerda. Do outro, o campo neofascista em torno do qual se agregaram múltiplos interesses, capitaneado pelo clã Bolsonaro.

O que aconteceu a seguir às eleições provou o desapego às regras democráticas por parte do candidato derrotado. Após dois dias de silêncio, a ver para onde o vento soprava e dando espaço para que nas bolhas comunicacionais dos seus apoiantes se ensaiasse a descredibilização das eleições e se alimentasse a esperança numa intervenção do exército, Bolsonaro falou. Sem admitir a derrota, sem saudar o Presidente eleito, culpando o processo eleitoral pelo “sentimento de injustiça” que justificaria o bloqueio de estradas, atacando a esquerda com mentiras sobre os seus “métodos” e repetindo o mote integralista, que Salazar fez também seu: “Deus, Pátria e Família”.

Por várias razões, não haverá, no sentido clássico, golpe de estado no Brasil. Na história latino-americana, estes contaram sempre com o apoio direto dos Estados Unidos. Apesar do investimento de Trump no bolsonarismo, Biden foi dos primeiros a reconhecer Lula, logo no domingo, aliás como dezenas de outros Chefes de Estado. Os bolsonaristas com mandatos também não querem ouvir falar de fraude. Pragmáticos, não desejam ferir a legitimidade dos seus próprios cargos futuros e preparam-se já para a nova fase. Ao ministro da Casa Civil coube apontar a transição política, admitindo a derrota. Os protestos que bloqueiam estradas são assim, ao mesmo tempo, um sinal de isolamento imediato do “bolsonarismo de rua” e uma antecipação do que poderá vir a acontecer nos próximos anos.

A polícia rodoviária federal, instituição em que Bolsonaro ganhou posições e assentou parte da sua rede de poder, mostrou-se do lado de quem violava a lei nos cortes de estrada. A atitude de parcialidade e de alinhamento com a extrema-direita já ficara patente no dia das eleições, quando uma série de operações de “fiscalização de veículos”, sobretudo nas regiões de maior apoio a Lula, intimidou votantes, procurando provocar a desistência e suprimir milhares de votos do campo democrático.

A atitude "compreensiva” da polícia perante as ilegalidades de bolsonaristas é um indicador de como esta pode ser um desestabilizador da ordem democrática e contrasta com a violência utilizada noutros contextos, nomeadamente na repressão de movimentos sociais dos sem terra, dos sem teto ou de indígenas. Por outro lado, os relatos sobre a suspensão, no dia das eleições, de transportes gratuitos em determinados Estados, para dificultar o voto dos mais pobres, é também sinal de como o aparelho de Estado poderá ser mobilizado no boicote ao futuro governo federal.

Em Portugal, mesmo quando não existe um apoio a Bolsonaro, os comentários às eleições revelam até que ponto certas fábulas da extrema-direita brasileira penetraram profundamente no senso comum mediático, constituindo “verdades” a partir das quais se discute, mas que não são elas próprias questionadas.

Primeiro exemplo: Lula seria um “mal menor”, mas mesmo assim um mal por ser um “ladrão”. Esta tese não se baseia em nenhum facto objetivo sobre Lula, mas numa narrativa da extrema-direita. Vale lembrar que houve, de facto, um processo conduzido por um juiz, Sérgio Moro, para afastar Lula da corrida às anteriores eleições. Esse juiz, que acusava Lula de ser “ladrão”, e sem o qual Bolsonaro não teria alcançado o poder, foi premiado com o Ministério da Justiça pelo Presidente cessante. Só que o Supremo Tribunal Federal anulou o processo contra Lula, numa decisão esmagadora, acusando Moro de abuso de poder, incompetência, parcialidade e denunciando a total falta de credibilidade do processo. Por cá, o rótulo colado a Lula pela extrema-direita, mesmo que desmentido pela Justiça, continua a ser reproduzido descontraidamente, muito para além do bolsonarista Ventura.

Segundo exemplo: estaríamos perante uma “bipolarização” entre “dois extremos”. É uma leitura corrente sobre o Brasil, embora seja delirante. Só no quadro mental da extrema-direita é que Lula pode ser apresentado como alguém da “esquerda radical”. Além do arco de alianças de Lula nesta campanha incluir figuras referenciais da direita brasileira, cuja presença foi reforçada pela participação ativa da liberal Simone Tebet na campanha, as próprias políticas dos governos Lula nunca foram, do ponto de vista económico, nada que qualquer centrista europeu não subscrevesse.

Não serve isto para desvalorizar os notáveis efeitos das medidas de inclusão social, de promoção da educação, de combate à fome e à pobreza dos mandatos de Lula (que retiraram mais de 20 milhões de pessoas da pobreza). Nem para contestar que o país esteja dividido, facto que os resultados eleitorais demonstram sem contestação. Mas só num imaginário colonizado pela extrema-direita é que Lula significa o “extremo” político que seria o reverso da moeda de Bolsonaro.

Quem pensa com base nestas narrativas perde facilmente o fio democrático da discussão. É o que sucede a tantas figuras da direita, que hesitam em reconhecer o óbvio - Lula da Silva era a única opção democrática nesta segunda volta das eleições brasileiras. E explica o sonoro silêncio da Iniciativa Liberal, o único partido português que nada disse sobre a vitória da democracia no Brasil.

Essa vitória, sublinhe-se, deve-se à figura de Lula e à circunstância de ser um democrata, mas também ao facto de não ser um liberal. É que um dos viveiros da desafeição pela democracia é a ausência de resposta a milhões de excluídos. O combate democrático não se travou, pois, pela mera preservação da formalidade institucional. Disse-o Lula, cristalinamente, no seu discurso de vitória: “O povo brasileiro quer viver bem, comer bem, morar bem. Quer um bom emprego, um salário reajustado sempre acima da inflação, quer ter saúde e educação públicas de qualidade. Quer liberdade religiosa. Quer livros em vez de armas. Quer ir ao teatro, ver cinema, ter acesso a todos os bens culturais, porque a cultura alimenta nossa alma. (...) É assim que eu entendo a democracia. Não apenas como uma palavra bonita inscrita na Lei, mas como algo palpável, que sentimos na pele, e que podemos construir no dia a dia.”

Haverá, a partir de janeiro, sabotagens à governação, técnicas de desestabilização a partir das instituições onde a extrema-direita mantém influência, interesses poderosos a condicionar a ação do novo governo, boicotes a medidas por parte da maioria no Senado e no Congresso. Mas, como escreveu o sociólogo Ruy Braga, que dedicou tanta da sua obra a uma análise crítica das contradições do lulismo, só Lula teria sido capaz, neste contexto, de salvar a democracia brasileira. E isso é uma dívida enorme que com ele têm todos os democratas do mundo.

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