Opinião

O que é que as eleições no Brasil têm para nos ensinar?

Por cá, como a corrupção raramente incomoda o PS, o seu secretário-geral - tragicamente também primeiro-ministro - apressou-se a apoiar Lula; já Bolsonaro, como exibe excessos grotescos de testosterona e fala grosso, é adulado pelos populistas destros. Estará aqui, nestas pontes pênseis luso-brasileiras, o futuro próximo da política portuguesa? Com o debate polarizado entre um 'statu quo', várias vezes corrupto, demasiadas vezes incompatível e quase sempre nepotista, e os populistas?

A resposta mais simples, mais snob, q.b. cínica, mas quiçá mais perceptível, à pergunta do título, é-nos dada por Nelson Rodrigues, esse amado brasileiro, que disse que “a maior desgraça da democracia, é que ela traz à tona a força numérica dos idiotas, que são a maioria da humanidade.”

Mas não satisfaz, não. À hora a que escrevo estas linhas ainda não se conhecem os resultados, mas mesmo sem os conhecermos, sabemos já muito sobre o caminho. Como resposta, arrisco o risco da desqualificação como prática e a eliminação dos moderados como fim, e por aí vou. Vejam, sem surpresa, esta formulação: o Brasil viu-se forçado a escolher entre um bandido auto-indulgente e um labrego autoritário. Chocante, não é? A formulação e a verosimilhança, certo?

E eis o Brasil, país tropical e abençoado por Deus, apertado numa tenaz desqualificante da democracia. Divago e penso em Dorothy e seus amigos, ledos, caminhando esperançosamente pela yellow brick road, num inspirado contraste cromático do amarelo e do verde, o da bandeira da ordem e do progresso, e nos brasileiros engarrafados numa dark brick road, soturnos e violentos, sem ordem e sem progresso.

Dizia tenaz desqualificante da democracia, porque a democracia, que vive da dissensão, vive da oposição de soluções alternativas. Soluções. A fronteira é ténue: fazer vencer o nosso ponto de vista, alimentando o debate, é diferente, ainda que vizinho, de obliterar o nosso adversário, desqualificando-o. A fronteira é ténue, repito: a fronteira entre o calor do debate empenhado, democrático e civilizado, e o tribalismo é demasiado frágil. Porém, tudo o que ali é, aqui não é: solução.

Uma palavra de desagravo sobre Lula: num país tão assimétrico, o Bolsa Família foi uma solução. Meritória. Essencial. Mas a libido dominandi, o sentimento de impunidade e a corrupção são fatais. Não para quem nela se faz, como se viu, mas para a democracia, como também se vê.

Meritória e essencial, porque num país com tantos desvalidos, esse apoio importa. Como importa - por maior repulsa que as razões que o justificam me cause - o apoio que a máquina de propaganda socialista rapidamente chamou de "os 125 euros do governo".

E cá chegámos. Por cá, como a corrupção raramente incomoda o PS, o seu secretário-geral - tragicamente também primeiro-ministro - apressou-se a apoiar Lula; já Bolsonaro, como exibe excessos grotescos de testosterona e fala grosso, é adulado pelos populistas destros. Estará aqui, nestas pontes pênseis luso-brasileiras, o futuro próximo da política portuguesa? Com o debate polarizado entre um statu quo, várias vezes corrupto, demasiadas vezes incompatível e quase sempre nepotista, e os populistas?

A pergunta que muitos brasileiros se fizeram - e que tantos portugueses se fazem - foi: como escolher entre estas duas opções? Cadê os moderados?

Os moderados têm sido ultrajados e arredados do debate. Lembram-se de Assunção Cristas? Alguém acha ali alguma vírgula de extremismo, alguma palavra fora da moderação? Pois, é bom lembrar que Assunção Cristas foi comparada a Donald Trump e acusada de racismo. Por quem? Por António Costa, lugar-tenente de José Sócrates, chefe de incompatíveis e protector de infractores.

Porquê? Porque aos extremos (de ambos os lados) e aos do poder, por razões diferentes, não interessam os moderados. Aos primeiros, porque não lhes serve a mesma regra do cavalheirismo e do respeito. Ainda há um ano, um deputado português recém eleito mandava uma ex-deputada "desco**nizar" a Assembleia. Aos segundos, porque a erosão de uma alternativa credível os perpetua no poder. E como é que isto se faz? Transmutando, com o beneplácito da comunicação social, o debate: não são já alternativas que se discutem, mas uma guerra semiótica que se trava. Não são as ideias de governo que se discutem, é a apropriação do sentido, do significado, do rótulo que se aplica ao outro.

Querem mais exemplos? Desde o 25 de Abril que há uma lei de bronze na política portuguesa: se estás à direita do PS és facho. Mas se és contra o aborto ou contra a eutanásia és ultra-conservador (e facho), se gostas de corridas de touros és um assassino (e facho), se és católico e vais à missa és beatolas (e facho), se és proprietário e defendes o teu direito à propriedade és um capitalista (e facho), se és empresário és um opressor da classe operária (e facho), se te opões ou tens reservas quanto à ideologia de género és transfóbico (e facho). O uso das expressões conservador, beatolas e capitalista, e assassino, opressor e transfóbico por razões óbvias, não são inocentes, nem as condições de atribuição de tal epíteto. O que com isto se pretende não é discutir o sentido, mas desqualificar o outro, roubando-lhe a pronúncia sobre o sentido do seu próprio rótulo. Condenando-o ao exílio, para fora do espaço da decência. E lançar o opróbrio sobre essas mesmas categorias.

E eis que agora, se és liberal és…liberal. Liberal passou a ser o novo opróbrio da política portuguesa. O liberalismo tornou-se no novo fascismo luso. Já a esquerda, essa, continua a de sempre: nada diferente da esquerda é digno de respeito, merecedor de debate. Só de desqualificação.

Foi a esquerda, pela mão do PS, que mais governou nas últimas décadas. Que é responsável pelo número crescente de pobres, pelo número crescente de famílias no limiar da pobreza, pela descida no ranking de riqueza na União Europeia, pelo descrédito crescente das instituições, pela quase duplicação da dívida pública. Tudo aquilo para o que o liberalismo tem alternativa válida. E o que é o país tem discutido nestas últimas décadas? A desqualificação do outro: da culpa do Passos, do Cavaco, do coronavírus, do Putin e do BCE. E enquanto esta desqualificação persiste, o PS, qual Lula, continua a aparecer, qual benfeitor dos pobres, a despejar as moedas que lhe sobram da maior carga fiscal da história. Não é só a política que se desqualifica, é o país. Como no Brasil.

Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia

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