Na passada sexta-feira, Hugo Franco e Rui Gustavo trouxeram à luz um importante exclusivo intitulado “A Polícia Judiciária tem o perfil de 700 incendiários nas suas mãos. Um deles foi agora detido em Leiria por atear um fogo”. Numa clara manifestação de que apenas pelo conhecimento se poderá evitar a criminalidade, esta base de dados da Polícia Judiciária permite perceber que tipo de incendiários existe no nosso país e vigiar reincidências.
O fogo posto é das maiores fontes de danos materiais, ferimentos e morte nos países ocidentais. A classificação das causas de ignição faz-se, por norma, em quatro categorias: (1) naturais (correspondem aos incêndios cuja ignição resulta das descargas elétricas provocadas pelas trovoadas); (2) negligentes (associadas a acidentes e a comportamento negligente, ou seja, uso do fogo na agricultura, ignições decorrentes de brincadeiras de crianças, de queima de lixos e do lançamento de foguetes e de cigarros e ainda de linhas elétricas, caminhos-de-ferro); (3) intencionais (estão relacionadas com o uso doloso do fogo, em que por detrás de cada ignição existe normalmente uma motivação para o ato); e (4) desconhecidas (podem resultar da falta de investigação ou da impossibilidade da determinação da causa, mesmo com a identificação do ponto de inicio, por falta de provas materiais e/ou pessoais, que permitam ao investigador despistar a causa da ignição).
No nosso país, o processo de investigação dos incêndios florestais baseia-se no método das evidências físicas, o qual consiste na avaliação dos padrões de comportamento do fogo e outros indicadores conducentes à determinação do ponto de início. Uma vez determinado este ponto é feita a leitura dos indicadores e estabelecida a relação entre o quadro de evidências físicas no local e o meio de ignição. Uma vez estabelecidos os quadros de indicadores, quer físicos quer pessoais, a informação é analisada e enquadrada numa das categorias de classificação das causas (naturais, negligentes, intencionais e desconhecidas).
Uma análise ao Relatório Anual de Segurança Interna de 2021 permite verificar um pico de casos de incêndio no ano de 2017 (mais de 11 mil), tendência que veio a decrescer desde então até 2021 e para a qual poderá não ter sido indiferente as restrições de circulação inerentes à pandemia nos dois últimos anos.
No contexto da prevenção dos incêndios florestais, o conhecimento das causas dos incêndios tem como objetivo produzir informação sobre o local (onde?), altura do dia (quando?), o método ou fonte de ignição (como?) e o motivo (porquê?) que levou ao incêndio. Para o estabelecimento do perfil do incendiário, será importante considerar estatísticas respeitantes ao registo criminal, à localização da residência em relação à cena do crime (geralmente habitam perto do local) e à motivação para o crime. Variáveis como o estado civil, as habilitações literárias e a ocupação devem também ser consideradas.
Existem igualmente elementos típicos do incendiário que são deixados na cena do crime e que ajudam a traçar o seu perfil. O incendiário denominado como organizado fabrica dispositivos incendiários (como mecanismos eletrónicos com marcadores de tempo, iniciadores, entre outros) e utiliza múltiplas formas de colocar fogo, tendo uma atuação mais rápida. Pelo contrário, o incendiário dito desorganizado utiliza o material mais acessível, como fósforos, cigarros e acelerantes de fogo comuns (gasolina) e deixa mais evidências no local do crime.
Os estudos nacionais mostram a presença de indicadores de doença mental como fator de risco associado ao fenómeno, realçando a existência de história clínica no incêndio florestal. Grande parte dos indivíduos possuem défices cognitivos e perturbação mental associada ao consumo de álcool, fazendo com que as perícias psiquiátricas e psicológicas se afigurem essenciais para a tomada de decisão dos magistrados.
Debruçarmo-nos sobre o comportamento de incendiarismo não deve ser sazonal, por questões preventivas, e exige atendermos, pelo menos, a três eixos relevantes em termos de risco e, consequentemente, de reincidência criminal. A este propósito, o risco de reincidência no crime de incêndio aumenta com a presença de histórico criminal prévio de outro tipo de crimes (como o furto, o homicídio e a violação), ou pelo mesmo tipo de crime ou associado a condução ilegal ou condução sob o consumo de álcool.
Em primeiro lugar, as características psicológicas e sociais do incendiário, que é, na maioria dos casos, do sexo masculino. Por norma, são indivíduos inseridos em famílias disfuncionais, possuem fracas competências académicas e sociais, integrando atividades profissionais de subsistência. Como ilustra o trabalho de Hugo Franco e Rui Gustavo que serviu de mote a esta crónica, destacam-se os comportamentos aditivos e a perturbação mental em casos de comorbilidade com a dependência de bebidas alcoólicas, sendo a piromania uma perturbação rara no que diz respeito às amostras dos incendiários florestais. A realidade clínica associada, muitas vezes, ao comportamento incendiário deverá fazer da intervenção um objetivo primário e central.
Por sua vez, a investigação disponível aponta ainda para baixos níveis de competências sociais, verificando-se que os incendiários são tendencialmente mais jovens e com um quociente de inteligência mais baixo quando comparados com indivíduos que não cometeram nenhum crime relacionado ao crime incêndio florestal. Estes indivíduos com baixas competências sociais recorrem tendencionalmente ao incêndio por motivos fúteis como chamar à atenção. Pode suceder estar associado a tentativa de suicídio.
O segundo eixo relevante prende-se com as características do crime de incêndio, em particular o tipo de dispositivo utilizado. Relativamente à experiência de incendiar, a sua grande maioria recorre à chama direta, não utilizando dispositivos muito elaborados. Os fogos são normalmente ateados à pressa e são usados materiais como fósforos ou jornais. Contudo, como aborda a peça jornalística, nos últimos anos, surgiram dois novos perfis bem diferentes do clássico incendiário iletrado, alcoólico e desestruturado. Um deles prende-se precisamente com o recurso a engenhos mais elaborados (fonte de energia autónoma, temporizador eletrónico).
Na grande maioria os incendiários não têm qualquer tipo de relação de proximidade com o proprietário do local incendiado, no entanto, ocorre tendencialmente junto à sua zona de residência ou do seu local de trabalho. Após o cometimento do crime, a grande parte dos casos tem tendência a abandonar o local e apenas uma minoria observa o incêndio e/ou até mesmo auxilia no combate ao incêndio, após o comportamento de fogo posto.
O terceiro eixo está relacionado com os motivos associados ao crime, os quais podem envolver a procura de excitação, chamada de atenção, vingança, tentativa de suicídio, vandalismo, o encobrimento de crime, a fraude e a intimidação. Por exemplo, quando se trata de excitação, tendem a ser adolescentes ou jovens adultos, de classe média, desempregados, que vivem com ambos os progenitores, são socialmente inadaptados, têm historial de detenções prévias (por pequenos delitos), atuam sozinhos e não têm motivação sexual. Os incendiários motivados pela excitação podem incluir bombeiros ou guardas, que cometem o crime para ganhar reconhecimento pela ajuda na extinção do incêndio.
Em Portugal, temos já histórico de incêndios de grande dimensão, inclusive com perdas significativas de vidas humana e animal, bem como retiradas de população, o que deve exigir reflexões profundas, de modo a basear a tomada de decisão mais adequada por parte da sociedade em geral e da administração pública em particular. Um valioso contributo para a resolução com sucesso deste crime é a compreensão da pessoa que o comete, não fossem a maioria dos incêndios em Portugal de origem humana, pelo que é no domínio da prevenção (sensibilização, fiscalização e produção de legislação) que é necessário intervir, mas também investigar (medida de segurança, programas de intervenção).
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