A Maria, o João, a Ana, o Manuel (nomes fictícios) fazem parte das 6.706 crianças e jovens que em 2020, estavam em instituições de acolhimento residencial e familiar como medida de proteção, segundo relatório Caracterização Anual da Situação de Acolhimento das Crianças e Jovens (CASA 2020). As histórias de vida de muitas destas crianças foram marcadas por situações de maus-tratos, abandono, abuso, negligência, consideradas situações de risco e/ou perigo, e que colocam em causa o seu desenvolvimento e bem-estar. São situações, muitas vezes, motivadas pela vulnerabilidade vivida pelas respetivas famílias resultantes de problemas como o desemprego, a dependência de substâncias, a pobreza extrema, entre outras. Quando a família falha nas suas obrigações de prestação de cuidados, de proteção e de afeto, o Estado é chamado a intervir e assume a responsabilidade de garantir a proteção e o bem-estar destas crianças.
Por muito desejável que seja poder-se viver num mundo onde não há necessidade de acolhimento residencial, o número de crianças e jovens que carece de uma alternativa à família de origem está em crescimento em muitos países. Dados recentes da UNICEF referem que cerca 2.7 milhões de crianças à escala global vivem em acolhimento residencial e 1.5. milhões na região Europa.
À escala global, a prioridade é pensar como melhorar a qualidade das respostas dos sistemas nacionais de acolhimento e apoiar as redes de suporte social a crianças, jovens e famílias. São objetivos há muito preconizados em normativos internacionais, como as Diretrizes para os Cuidados Alternativos de Crianças, aprovadas pela Assembleia Geral nas Nações Unidas, em 20 de novembro de 2009, que definem o acolhimento residencial como cuidados formais de curto ou longo prazo providenciados em ambiente institucional, incluindo centros de emergência, casas de acolhimento e outros equipamentos residenciais. Este conceito abrange uma multiplicidade de medidas, regimes e modalidades de funcionamento, pelo que é necessário um cuidado especial na análise comparada entre diferentes sistemas.
No nosso país, a Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, revista em setembro de 2015, defende “a manutenção da criança no seu contexto familiar, atendendo ao seu superior interesse, sempre que esta não se encontre em risco ou perigo”. No caso de retirada à sua família de origem, esta lei estipula que as crianças até aos 6 anos devem ficar preferencialmente em acolhimento familiar.
Isto significa que se quer dar prioridade às medidas que a integram numa família (biológica e/ou adotiva) em detrimento da colocação de uma criança em acolhimento residencial. Esta disposição contrasta com a realidade portuguesa, em que o acolhimento residencial assume uma fortíssima expressão atingindo, desde há anos, valores superiores a 95% do total das medidas aplicadas anualmente pelos Tribunais e Comissões de Proteção de Crianças e Jovens. Por seu turno, o acolhimento familiar representa apenas 3%, o que coloca o nosso país numa situação diferenciada no contexto internacional. Merece referir que o ordenamento jurídico português dispõe de uma medida de apoio junto de outro familiar que, noutros países, é classificada como acolhimento familiar, o que importa ter presente na leitura dos dados.
A este propósito, o Comité dos Direitos da Crianças das Nações Unidas tem vindo a recomendar ao nosso país uma alteração profunda na situação da matriz protetora que coloca em causa um dos direitos fundamentais da criança, que consiste na possibilidade de crescer numa família. Nas suas Observações Finais sobre o quinto e sexto relatórios periódicos de Portugal, de setembro 2019, aquele Comité alerta para a urgência de uma estratégia nacional de desinstitucionalização, com objetivos claros e com uma forte aposta no acolhimento familiar em todo o território nacional. A par disso, aponta para várias fragilidades do sistema nacional, como o recurso ainda muito generalizado à institucionalização, principalmente de crianças menores de 3 anos por motivos de pobreza ou deficiência; a insuficiência de políticas e/ou planos de ação para assegurar a coordenação e funcionamento eficaz do sistema de cuidados alternativos, quer sejam em regime residencial ou de outra natureza; e o pouco progresso registado em relação ao acolhimento familiar.
Com um sistema de proteção similar ao português, a Irlanda fez, em dez anos, a inversão dos números. Temos que acelerar as medidas a tomar no que respeita ao acolhimento residencial. Foi necessário esperar quatro anos para que as regulamentações do acolhimento familiar e residencial fossem publicadas e, mesmo assim, em ambos os casos, a sua implementação ficou dependente da publicação das respetivas portarias que aconteceu um ano depois, no caso do acolhimento familiar, faltando ainda a portaria relativa ao acolhimento residencial, que vai definir as regras para a reconversão das casas de acolhimento.
Isto não significa, naturalmente, que para certas crianças ou jovens a melhor solução não seja a colocação em acolhimento residencial, especialmente para os mais velhos, os que foram retirados com vários irmãos, ou os que têm necessidades especiais. Nestas situações, é preciso acautelar que as casas de acolhimento sejam pequenas (6 e 8 crianças), de alta qualidade, geridas com base em modelos terapêuticos ou especializados e essencialmente para adolescentes e jovens, uma vez que, para as crianças até aos 6 anos, a institucionalização não deverá ser considerada como opção.
Simultaneamente, tem que haver uma aposta clara num sistema de promoção e proteção de crianças e jovens que coloque a tónica não só na proteção, mas também na prevenção e na promoção dos direitos das crianças. Ou seja, a intervenção deveria ser antes, no sentido de evitar a necessidade de uma medida de acolhimento, protegendo e apoiando as famílias, e continuando a trabalhar em conjunto com as famílias durante o período em que a criança está acolhida.
Termino com comecei, com os nossos quatro protagonistas: a Maria, o João, a Ana e o Manuel. Os seus desejos não diferem das aspirações das outras crianças: querem sentir-se amadas, integradas e escutadas, que a sua vida seja o mais normal possível, e que o acolhimento constitua uma oportunidade para ter uma família que as ame e proteja. Foram retiradas às suas famílias pelo Estado, com o argumento de que esta era uma medida para a sua proteção: como o Estado somos todos nós, todos nós somos responsáveis por estas crianças e por as restantes 6.706 crianças acolhidas, porque as outras têm os pais para as amarem e protegerem.
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