De repente instala-se uma discussão com argumentos contra e a favor em relação a uma decisão tornada pública referente às normas de elaboração de ementas e venda de géneros alimentares nos estabelecimentos de educação e ensino, numa ocasião em que a maioria dos portugueses ainda estava de férias e não queria pensar na reabertura das escolas depois das medidas de confinamento a que todos fomos sujeitos durante estes dois últimos anos. Com aquela decisão pretende-se que as escolas públicas comecem a oferecer refeições "nutricionalmente equilibradas, saudáveis e seguras". Trata-se de uma extensa lista de mais de meia centena de produtos que não devem constar dos menus escolares e que vão desde as sandes de chouriço, croissants, empadas ou batatas fritas até aos hambúrgueres, cachorros-quentes e sumos com açúcar adicionado.
Não sendo profissional em nutrição infantil, matéria que deixo para quem tem formação técnica na área, interrogo-me em relação ao motivo para tanto alarido? Será uma medida que coloca em causa os direitos das crianças?
Para se perceber melhor o que está em causa, considero fundamental que se interprete com largueza de vistas os direitos das crianças, em todos os domínios, mas com especial atenção à questão da alimentação que não é difícil relacionar com o direito à vida, mesmo antes de lhe acrescentar a exigência da vida com dignidade, expressa na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança que reconhece o direito a todas as crianças ao mais elevado nível de saúde e a um nível de vida digno.
Numa interpretação abrangente, podemos considerar aquela afirmação como uma forma de responsabilizar o Estado e os diferentes atores sociais (indivíduos, famílias, comunidades locais, organizações não governamentais, organizações da sociedade civil bem como as do setor empresarial) para a necessidade de tudo fazer de forma a evitar que as crianças adoeçam, fornecendo-lhes uma alimentação equilibrada, completa e variada, para satisfazer as necessidades nutricionais e contribuir para o bom desenvolvimento físico e cognitivo das crianças, ao longo das diferentes fases da suas vidas, bem como o acesso, sempre que necessário, aos cuidados de saúde e medicamentos.
Como todos sabemos, os comportamentos saudáveis desenvolvidos na infância e na juventude duram a vida toda. As medidas preventivas destinadas a dirigir os hábitos alimentares deverão incentivar o consumo de alimentos de boa qualidade nutricional desde a mais tenra idade e ser prosseguidas através de uma abordagem baseada no ciclo de vida.
Para tornar evidente a prioridade de se assegurar o direito à alimentação como um direito fundamental para o saudável desenvolvimento infantil, em particular, e para a concretização dos direitos da criança, em geral, passo à enumeração das evidências, deixando de lado a discussão dos conceitos e outras mais considerações sobre o tema.
Os dados relativos aos hábitos alimentares do Sistema de Vigilância Nutricional Infantil do Ministério da Saúde de 2019 (COSI Portugal) indicam que uma em cada três crianças Portuguesas (29,6%) tem excesso de peso e 12% obesidade infantil; 40% dos adolescentes bebe refrigerantes diariamente, mais de metade tem um consumo de hortofrutícolas abaixo do recomendável e mais de 20% consome açúcar acima dos níveis recomendados. A prevalência da obesidade infantil aumentou com a idade, com 15,3% das crianças de oito anos obesas, incluindo 5,4% com obesidade severa, um valor que é de 10,8% nas crianças de seis anos (2,7% obesidade severa). Por regiões, os Açores são a região com maior prevalência de excesso de peso infantil, com uma em cada três crianças com peso a mais, apesar ser a região que mais reduziu este valor desde a anterior recolha de dados, que avaliou 7.210 crianças de 228 escolas de Portugal continental, Açores e Madeira.
A par desta situação, temos que desde 2012 as escolas recebem recomendações para pôr em prática hábitos alimentares saudáveis, mas a instrução era por vezes interpretada como recomendação, como se constata num estudo feito em 2018 que concluiu que apenas 1,3% das 161 escolas analisadas respeitavam aquelas orientações.
Embora a alimentação e nutrição adequadas se configurem como direitos fundamentais da pessoa humana e requisitos básicos para a promoção e proteção da saúde, existe ainda um longo caminho a percorrer no sistema alimentar escolar: há medidas positivas, como é o caso dos normativos que regem a alimentação das cantinas, dos bufetes escolares e das máquinas de venda automática, mas é preciso mais. Não basta proibir, é preciso apostar numa abordagem mais abrangente e multidisciplinar colocando como prioridade a reeducação alimentar das crianças e jovens no meio escolar porque o controlo do peso e da obesidade passa também pela vontade daqueles quererem ser saudáveis.
Cabe ao Estado enquanto primeiro cuidador a responsabilidade de proteger e cumprir os direitos das crianças. Isto significa que a intervenção tem que ser a vários níveis, a começar pela comunidade escolar, com o objetivo de aumentar a literacia alimentar e nutricional e capacitar para escolhas mais saudáveis, bem como investindo na melhoria da formação, qualificação e modo de atuação dos diferentes agentes e profissionais que podem influenciar o consumo alimentar dos alunos. No ambiente escolar, é necessário definir normas de oferta alimentar, alterar a disponibilidade alimentar e monitorizar o seu cumprimento. E, finalmente, os pais ou encarregados da educação devem ser ativamente envolvidos e integrados em todas as atividades, enquanto agentes influenciadores do consumo alimentar das crianças.
Este é um momento que exige responsabilidade daqueles que elaboram e aprovam as leis e as políticas em Portugal. O direito da criança a uma alimentação adequada e saudável têm prioridade absoluta, diz a Convenção. Portugal é parte desta e é com este objetivo que temos que caminhar. É desta forma que devemos seguir em frente, sem hesitações para uma alimentação saudável nas escolas. Não basta proibir, é preciso ensinar também!