Opinião

As pessoas com corpos com vaginas devem pedir licença aos bebés para lhes mudar as fraldas?

Por um lado, cancela-se o sexo biológico a favor do género, em nome da liberdade e diversidade sexual (?); por outro, oblitera-se o afecto hipersexualizando a vida, e até a relação entre pais e filhos bebés. Por um lado, esquecemo-nos que somos animais, biologicamente falando; por outro, animalizamo-nos, selvaticamente falando. Em ambos os casos, desumanizamo-nos. (...) No fim? Bom, no fim a sociedade terá uma fralda suja e cheia para mudar. Mas duvido que alguém nos peça licença para o fazer

O título deste artigo, já de si bastante longo, deveria ser, na verdade, o seguinte: As pessoas com corpos com vaginas, e, também, pessoas com corpos com pénis, progenitores de pessoas com muito pouca idade, devem pedir-lhes licença para abrir as fraldas, e limpar os genitais?

Guardem o escândalo. Contenham a fúria. Derroguem o riso. O assunto é sério. Ou não. Como dizia Paul Wastzlawick, a situação é desesperada, mas não é séria. O estimado leitor decidirá. Seja como for, isto é "ciência". E não sou eu que o digo. Vamos por partes.

Na primeira página da última edição da prestigiada revista médica Lancet, lê-se (tradução livre): “Historicamente, a anatomia e a fisiologia dos corpos com vaginas têm sido negligenciadas”. Trata-se de um artigo de Sophia Davis, vem a propósito de uma exposição sobre menstruação no Museu da Vagina, e versa sobre o quanto esta condição - a das mulheres ou das "pessoas com corpos com vaginas", o leitor escolha - desmereceu a atenção devida. Nada a opor. Sobre o desmerecimento, digo. Mas, então, porquê esta formulação? Porque mulheres com vaginas podem na verdade ser pessoas que se identificam como homens. E homens sem vagina identificar-se como mulheres. A palavra-chave aqui é: identificar. Ou seja, o que a Sophia Davis pretendeu - e a Lancet resolveu destacar - foi menosprezar a biologia em favor de uma política de identidade. Porque é que digo menosprezo da biologia? Porque o facto de uma pessoa possuir um corpo com vagina implica um conjunto de outros traços que não se esgotam na genitália; passam pelos cromossomas, pelas hormonas e pelos órgãos internos, e influi sobremaneira na identidade. Características, essas, que, no caso, a ciência sempre tratou como mulher. Eu sei, eu sei, que há casos de intersexo; e também sei que há, sobretudo, mais casos de transgenéros. E é aqui, sobretudo aqui, que entramos na questão da identidade. Leio por aí, que nesta reconstrução social da identidade e da língua, há até quem queira substituir a palavra vagina por "orifício frontal”, para afastar a carga feminina da palavra.

Não tenho nada contra as identidades, nem quanto à fluidez das mesmas, mas tenho tudo contra as políticas identitárias. E não tenho nada contra o direito de Davis escrever a opinião que quiser, mas sobressalto-me quando uma revista científica resolve dar destaque a isso na sua capa. Porque enquanto que as identidades (e as opiniões) são afirmadas individualmente na sua liberdade, as políticas de identidade impõem-se a todos, obliterando a ordem. Ordem? Ordens: a biológica e a social. E se sobre a última é próprio das sociedades, que entre mudanças sociais espontâneas (grown order) e construções sociais ideologicamente motivadas (made order, para usar a velha terminologia de Hayek), como é o caso, haja alterações, já o atropelo à ordem biológica é um processo anti-natural. Querem uma adversativa pública óbvia, bastante discutida e inequivocamente ilustrativa? O desporto.

Voltemos à Lancet: se há - e há - negligência histórica, essa negligência é, em primeiro lugar, e em número estratosfericamente mais significativo, sofrida pelas mulheres. Não é uma questão de identidade psicossocialmente construída, é uma questão de assimetria entre sexos; de desigualdade entre homens e mulheres. Derrogar esta evidência em nome de uma agenda identitária é menosprezar o prejuízo das mulheres. Repito: mulheres. E prejudicar a luta feminista travada ao longo dos séculos.

Noutro lugar, há três anos, especialistas informaram-nos e lançaram campanhas advertindo os pais - que na novilíngua se designam progenitores; com as mesmas motivações que as anteriores - devem pedir gentilmente licença e a cooperação dos seus filhos para lhes mudar a fralda e limpar os genitais, e não simplesmente assumirem que podem. Argumento? Para que se possa estabelecer um relacionamento repleto de confiança e respeito; ou, mais simplesmente, uma cultura de consentimento. Mas, porquê isto? Porque "as nossas mãos são a introdução de um bebé no mundo". Deanne Carson, a "especialista", diz que sabe que os bebés não vão responder (Uau!), mas que "devemos dar um espaço e esperar pela linguagem corporal e o contacto visual, porque assim estamos a dar oportunidade para a criança perceber que a sua resposta importa." Boa sorte com isso, progenitores com vaginas e com pénis, quando às 3 da manhã, a vossa pessoa de pouca idade, com a fralda suja e cheia, começar a gritar, triturando o vosso cérebro e acordando os vossos vizinhos. Os do fim da rua.

Mas, então, o que é que verdadeiramente se esconde atrás disto? Não esconde. Carson, assim que foi atacada no Twitter, mostrou o jogo: partilhou estatísticas de abusos sexuais a crianças, para defender a sua "boa prática". No fundo, para esta "especialista", a mudança de fraldas a um bebé, o cuidado com o seu bem-estar e a sua higiene não é um acto espontâneo e natural de amor, mas uma tarefa com uma componente sexual latente.

Ou seja, por um lado, cancela-se o sexo biológico a favor do género, em nome da liberdade e diversidade sexual (?); por outro, oblitera-se o afecto hipersexualizando a vida, e até a relação entre pais e filhos bebés. Por um lado, esquecemo-nos que somos animais, biologicamente falando; por outro, animalizamo-nos, selvaticamente falando. Em ambos os casos, desumanizamo-nos.

Depois de Nietzsche ter anunciado a morte de Deus, a ciência parece agora querer suicidar-se. No fim? Bom, no fim a sociedade terá uma fralda suja e cheia para mudar. Mas duvido que alguém nos peça licença para o fazer. Cataclísmico e ultra-conservador? Pensem duas vezes: Bev Jackson, fundadora da Frente de Libertação Gay, na longínqua década de 70 do século passado, e uma das fundadoras da mais recente LGB Alliance, twittou: "A desumanização é o prelúdio da violência”. Tem razão.

Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia

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