Opinião

Jorge Sampaio e a luta contra o proibicionismo

Jorge Sampaio e a luta contra o proibicionismo

João Taborda da Gama

Advogado, docente universitário, trabalha na área da regulação das substâncias controladas

Num encontro em junho de 2019, num tom impaciente e irónico (a tal inquietude?) Jorge Sampaio disse, cito de memória, que é preciso fazer mais, que não podemos achar que está tudo bem ou tudo feito, e perguntou: estão à espera que seja eu com quase 80 anos que ainda vá fazer isto?

Jorge Sampaio lutou pela regulação das drogas como poucos. Lutar contra o proibicionismo é uma forma de lutar pelos Direitos Humanos, por mais dignidade de cada um, sobretudo de muitos dos mais pobres (os tais excluídos do sistema, os dispensáveis, a quem no discurso de tomada de posse como Presidente prometeu aliança), e por mais liberdade individual de cada um de todos nós. E é uma luta paradoxalmente mais difícil do que outras que terá travado ao longo da sua vida, e pelas quais ficou mais conhecido, porque aqui a luta é contra o preconceito, as ideias feitas, a má ciência. É sobretudo difícil porque é uma luta contraintuitiva: é mais confortável acreditar que se uma substância com riscos for proibida, isso é melhor para a saúde de todos, do que se for disponibilizada de uma forma regulada – é uma ideia atrativa, mas desmentida pela história.

Jorge Sampaio foi uma peça chave na construção da política portuguesa de drogas que em 2000, para espanto de muitos e choque de alguns, descriminalizou o consumo. Uma política que salvou e dignificou milhares e milhares de vidas, e que hoje é um modelo no mundo inteiro (talvez a única política pública made in Portugal que se começou a globalizar). Fê-lo enquanto Presidente da República de várias formas. Por um lado, foi sempre visto como uma força motriz da ideia, promovendo debates, ouvindo, consensualizando, pondo a discrição ao serviço da eficácia (a tal magistratura de influência). Por outro, enquanto Presidente, promulgou a lei (outros tê-lo-iam feito?). Mas promulgou a lei não sem antes a ter vetado, e devolvido ao Parlamento, para que as assembleias legislativas regionais fossem formalmente ouvidas. Sampaio não queria que a lei tivesse nenhum vício jurídico formal que a pudesse, mais à frente, deitar abaixo. É aliás, no texto desse veto, que resume o que pensa sobre o assunto: “Trata-se de um diploma que pode constituir um passo significativo na abordagem política e legislativa de um problema para o qual as pretensas soluções definitivas, globais e ideologicamente fechadas se têm revelado inadequadas. Importa é garantir que uma avaliação permanente dos resultados da sua aplicação seja acompanhada da discussão séria, aberta e informada que, a propósito deste tema, sempre tenho propugnado”.

Sampaio, que se definiu como um homem inquieto, não parou com a aprovação da lei a sua luta pela regulação das drogas e a sua cruzada contra o contra o proibicionismo. Descriminalizar o consumo, sabia-o, é um passo gigante, mas apenas o primeiro. Já terminado o consulado presidencial, integrou a Global Commission on Drug Policy (GCDP), uma organização internacional que defende políticas de drogas mais humanas, adequadas a cada país, desde a descriminalização à regulação de um mercado lícito. Na Global Commission, cruzou-se com nomes como: Kofi Annan, Richard Branson, Helen Clark, George Papandreou, Javier Solana, Ramos-Horta, Ruth Dreifuss, Fernando Henrique Cardoso, Mario Vargas Llosa, Paul Volcker e George Schultz. E não ficou calado.

Em 2014, nas Nações Unidas, Sampaio defendeu os mercados regulados afirmando que “regulação significa tomar o controlo, para que sejam os governos e não os criminosos a decidirem sobre a disponibilidade ou indisponibilidade das diferentes substâncias, em diferentes contexto”; em 2016 defendeu que “os países devem continuar a explorar opções para a saúde, redução de riscos, e para uma regulação rigorosa de um mercado legal de algumas das drogas atualmente ilegais”. Em 2018, defendeu a canábis medicinal, e em 2019 criticou a classificação das drogas constante dos tratados das Nações Unidas, que “tem pouca ou nenhuma correlação com os danos cientificamente avaliados”.

Não podemos ficar parados, dizia muitas vezes a propósito da política de drogas em geral, mas sobretudo da política de drogas portuguesa, que parecia não querer ver morrer à sombra dos louros. Foi isto que o ouvi dizer, num encontro com a sociedade civil sobre a regulação da canábis, a que presidiu, em junho de 2019 na Fundação José Saramago, organizado pelo GAT – Grupo de Ativistas em Tratamentos. No final, numa curta intervenção, num tom impaciente e irónico (a tal inquietude?) disse, cito de memória, que é preciso fazer mais, que não podemos achar que está tudo bem ou tudo feito, e perguntou: estão à espera que seja eu com quase 80 anos que ainda vá fazer isto?

Saibamos todos, políticos e sociedade civil, merecer este legado e estar à altura deste repto.

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