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Holodomor, Louçã e as caricaturas sucessivas

Espanta-me que Louçã, que se fez trotsquista por reação aos crimes de Estaline, não tenha percebido a gravidade de fazer uma piada com o seu maior crime. E que haja quem acredite que um trotsquista pode ser negacionista dos crimes do estalinismo. Quis Beuvink perceber que o “mito” de que os comunistas comem criancinhas foi usado como propaganda literal? Quis Louçã perceber o essencial da intervenção de Beuvink? Os indignados percebem o absurdo de acusar Louçã de esconder crimes que o fizeram ser o que é politicamente?

A deputada municipal e vice-presidente do PPM, Aline Beuvink, fez, há mais de um ano, uma intervenção na Assembleia Municipal de Lisboa sobre a votação no Parlamento Europeu, que equipara os comunistas aos nazis. Uma votação política com objetivos políticos. Teve como principal função normalizar a extrema-direita nos países ocidentais e dar espaço ao poder instituído nas “democracias iliberais” do leste europeu para perseguirem comunistas sem problemas de maior. Como quase sempre, os partidos socialistas europeus (não o português) foram os idiotas úteis nesta história. Não me vou prender a este debate, promovido por movimentos neofascistas para fraquearem as portas do poder, comparando-se a partidos que vivem há décadas em paz com a democracia e contribuindo ativamente para ela. Já tratei deste debate no centenário do PCP.

Na sua intervenção, a deputada de origem ucraniana explicou, com justiça e emoção, os horrores da campanha de fome que Estaline lançou contra a Ucrânia – que ajuda a explicar algum colaboracionismo de alguns ucranianos com os invasores alemães, anos mais tarde, vistos como libertadores. Este período macabro e criminoso da coletivização forçada da agricultura na Ucrânia, entre 1931 e 1933, ficou conhecido como Holodomor (“matar de fome”).

Se querem uma visão distanciada e rigorosa, aconselho este excelente podcast com o insuspeitíssimo historiador Stephen Kotkin (muito longe da esquerda), autor de “Stalin: Waiting for Hitler, 1929-1941” (dos 08’05’’ aos 16’20’’). Aí se faz uma distinção entre responsabilidade e intencionalidade, moralmente indiferente, mas analiticamente relevante quando se fazem comparações com o Holocausto: “Não há dúvida sobre a responsabilidade de Estaline pela fome. A polémica, na medida em que existe, é sobre as suas intenções. Temos um número inacreditável de documentos que mostram que Estaline cometeu assassinatos intencionais, o Grande Terror ou outros episódios. (...) No entanto, não há documentação que mostre que ele pretendia matar de fome a Ucrânia e os seus camponeses. (...) Se Estaline não tivesse mentido e forçado todos a mentir, negando a existência de uma fome, eles poderiam ter tido ajuda internacional, que é o que eles obtiveram sob o governo de Lenine, durante a sua primeira fome em 1921-23. A culpabilidade de Estaline é clara, mas a questão da intencionalidade é completamente minada pelos documentos.” O ideal é ouvir o podcast completo, muitíssimo interessante. Só não aconselho o livro porque eu próprio ainda não o li.

Sem que tal fosse necessário, porque o horror do Holodomor chega e sobra para esmagar qualquer ser humano com um pingo de decência, a deputada municipal usou uma imagem que não faz qualquer sentido: a de que os comunistas comem criancinhas. Explicou que esse “mito” tinha nascido do facto de os ucranianos se terem visto obrigados a entregar-se ao canibalismo para sobreviver, incluindo comerem os seus próprios filhos. Na realidade, o “mito” até nasceu nos anos 20, por causa da grande fome que sucedeu à I Guerra Mundial, revolução e guerra civil, tendo sido apenas reforçado pela campanha de fome na Ucrânia.

Até do horror se podem fazer caricaturas e essas são as mais desnecessárias de todas. E a ideia de que os comunistas comiam criancinhas não foi propriamente um “mito”, mas uma mentira da propaganda primária que se associava, como é costume, a factos verdadeiros. Ela foi usada em democracias e ditaduras europeias, incluindo a portuguesa, para consumo interno.

Em Itália, o “mito” foi alimentado, em 1943, pela propaganda contra os aliados, através de notícias falsas sobre a deportação de crianças sicilianas (e de outros países) para a URSS, apesar de os russos nunca terem estado em Itália. O “mito” foi continuado pela República Social Italiana e, mais tarde, repegado pela democracia-cristã, durante a Guerra Fria. Aqui, podem ver cartazes antigos (onde podem observar como, pelo menos num caso, o hábito de associar os comunistas aos judeus, o anticomunismo ao antissemitismo) e ler notícias saídas em Itália, aquando da publicação do livro “I Comunisti Mangiano i Bambini. Storia di una Leggenda.”, de 2013, do historiador Setfano Pivato. Como em muitas notícias falsas, o “mito” nasceu de propaganda misturada com factos e repeti-lo apenas ajuda a obscurecer a verdade do terror estalinista, suficientemente doloroso. A primeira caricatura nesta história foi de Aline Beuvink e era escusada.

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