Opinião

Administração Pública: a amante da esquerda, a meretriz da direita

Sendo a bazuca uma arma de destruição, o governo vai utilizá-la para destruir qualquer expectativa de crescimento e aumento de competitividade económica em Portugal

A "bazuca" - o termo é inspirado - distribui 67% dos fundos europeus para o sector público e 33% para o sector privado. O termo é inspirado, porque sendo a bazuca uma arma de destruição, o governo vai utilizá-la para destruir qualquer expectativa de crescimento e aumento de competitividade económica em Portugal. E não é por incompetência, é por conveniência: um país mais pobre, uma população mais dependente e um Estado mais omnipotente é o sonho de qualquer socialista.

Recuemos um ano. No dia em que o Diário da República publicava o primeiro Estado de Emergência, publicava também um aumento para os funcionários públicos. Dito de outra forma: no dia em que se anunciava o início de um período de empobrecimento generalizado para os portugueses, os funcionários públicos foram aumentados. Dito ainda de outra forma: no dia em que o marido chega a casa e diz à mulher que vão ter de fazer cortes nas despesas familiares, fá-lo acabado de chegar do hotel onde ofereceu uma jóia à amante (*).

Segundo dados do Orçamento do ano passado, a Administração Pública terá custado cerca de 35 mil milhões de euros; 23 mil e 500 milhões para salários e 11 mil e 500 milhões para custos intermédios. Por outro lado, o último relatório da Direcção-Geral da Administração e Emprego Público informa que havia, a 31 de Dezembro do ano passado, cerca de 700 mil funcionários públicos.

É muito? Eu tendo a dizer que sim. Porque 37% da receita arrecadada em impostos (95 mil milhões de euros) para pagar o funcionamento da máquina do Estado parece muito. Sobretudo se pensarmos que outros 42% são para pagar prestações sociais. Porque 700 mil funcionários públicos, numa população activa que ronda os 5 Milhões, num país tão deficiente em matéria de competitividade económica, parece muito. E, finalmente, porque a distribuição que este governo se prepara para fazer das verbas da 'bazuca' entre os sectores público e privado, assume contornos de insensatez venezuelana. Em síntese, porque não há país que alavanque o seu crescimento, a criação de riqueza e a promoção de liberdades - desafios que deveriam ser prioritários em Portugal - usando essencialmente o Estado como motor

Mas admitiria que a resposta fosse depende. Desde logo porque não há país justo, solidário e coeso - desígnios inalienáveis de uma democracia liberal europeia - sem um Estado forte (não confundir com grande ou gordo). Mas também, objectivamente, porque os recursos só são parcos ou excessivos se soubermos, de antemão, os seus propósitos de eficácia, os seus mecanismos de eficiência e os seus padrões de qualidade. Alguém sabe quais são? E o que os principais partidos defendem? É que raramente ouvimos um discurso sensato, coerente e informado sobre o tema daqueles que, à esquerda, acham que o problema da (falta de) qualidade dos serviços públicos é o da falta de pessoal, e daqueles que, à direita, afirmam que o problema do país é que há funcionários públicos a mais.

Concretizo um pouco: de que vale a direita clamar que há funcionários públicos a mais - achando sempre que há polícias a menos - sem dizer, com rigor, onde é que os vai cortar?; de que vale a esquerda clamar que há funcionários públicos a menos, se lhes reduz o horário de trabalho, como calamitosamente fez no SNS, ao mesmo tempo que está sempre a querer alargar a esfera de competências do Estado?; de que vale a direita apresentar-se quase sempre como um adversário do Estado e um inimigo dos funcionários públicos, se gosta de sociedades alicerçadas na lei e na ordem e de instituições respeitadas e respeitáveis?; de que vale a esquerda declarar amor aos funcionários públicos e à Administração, se ninguém os gere tão mal como o PS, usando-os em prol de uma estratégia eleitoral, no lugar de lhes dar condições de bom trabalho em prol do país?

Dito isto, há cinco pistas que gostaria de deixar aqui para que o debate em torno do Estado e da Administração Pública deixasse de ser tão indigente. A primeira é que, se o povo tem razão quando diz que o exemplo vem de cima, seria bom que se acabasse o assalto ao Estado: impondo o mérito onde hoje aparentemente impera a subserviência, como já aqui escrevi. Não há motivação que resista a tanta incompetência; não há serviço público que subsista a tanto serviço partidário. A segunda é que se procedesse a uma simplificação administrativa e legislativa, e que se matasse o gigante Gerião: ninguém se entende sem um Código uno e estável sobre a Administração. A terceira é que se estabeleça, num alargado pacto de regime, quais as funções que o Estado deve providenciar: quais as que deve prestar em regime de monopólio, quais as que deve prestar em regime de complementaridade e, justificando-se muito, quais as que pode desempenhar em regime de concorrência. A quarta é que não há modernização administrativa que resista à falta de estratégia, e não há estratégia que resista à falta de visão: na dúvida, é aprender com a Estónia.

A quinta tem a ver com a gestão de pessoas. Recado à esquerda: por mais tentador que seja oferecer uma jóia, mesmo que de pechisbeque, à sua amante mais fiel - enquanto se anuncia em casa que não há dinheiro para mais -, não há relação duradoura que resista a uma família em casa e a uma amante no hotel. Ou, como se costuma dizer: não se pode enganar toda a gente, ao mesmo tempo, o tempo todo. Recado à direita: não esperem lealdade de quem é tratado como uma meretriz. O discurso da direita sobre a Administração Pública não pode ser só utilitarista, quanto mais barato melhor e sem perspectivas sólidas de futuro. Mais a sério: não há menos Estado e melhor Estado, não há valorização do mérito, não há promoção da liberdade, não há lei e ordem, sem propostas responsáveis e um discurso construtivo sobre o Estado e a Administração Pública e sem funcionários públicos bem geridos.

Explico melhor. A geração Millennial tem hoje entre 25 e 40 anos. E, surpresa, representam quase 50% dos funcionários públicos portugueses (dados da DGAEP de 2020). De acordo com um relatório da McKinsey (McKinsey Report on Public Sector 2017), esta geração valoriza primordialmente, nos seus empregos, um trabalho que faça sentido, flexibilidade e autonomia, relacionamento e mentoria, progressões rápidas, variedade funcional e desafios, reconhecimento e valorização, e a possibilidade de poder opinar sobre o rumo das coisas. Por outro lado, o que mais os desmotiva é a hierarquia e a burocracia, promoções excessivamente lentas, a impossibilidade de poderem participar nas decisões, não receberem feedback construtivo e estarem expostos a líderes incompetentes. Podia voltar aqui a insistir no quanto as instituições públicas mantêm, em demasiados casos, organizações de trabalho do século passado, estruturas hiper-hierarquizadas e processos mega-burocratizados. Podia demonstrar aqui como o Sistema Integrado de Avaliação de Desempenho (SIADAP) é condicionado à partida, inconsequente à chegada e irrelevante e equívoco pelo caminho. Não o vou fazer. Olhando para o relatório da McKinsey e para aquilo que conhecemos da generalidade da Administração Pública portuguesa, a piada (de humor negro) faz-se sozinha.

Talvez fosse bom arrepiar caminho. Até porque o lugar de país mais pobre da zona euro está praticamente assegurado; a partir daqui, é só ganho. Porém, para isso, convém não trazer paixão e interesse próprio para onde deveria imperar a razão e serviço público. Se os enamorados acham que o muito dinheiro que as amantes custam justificam o prazer que proporcionam, ou, outros, que as meretrizes, pesando menos nas contas, servem bem para as necessidades imediatas, estão enganados. É porque nem umas, nem outras, vão construir nada muito duradouro. Mas, enquanto isto, ao menos façamo-lo como Bocage: "sempre avante a paixão, /Buscando seu doce fim; /Os amantes são assim: /Todos fogem à razão."

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(*) Os polícias da inclusão podem substituir marido, mulher e amante pelas expressões politicamente correctas, neutras, inclusivas, e o que mais vos aprouver, mas não me aborreçam agora, que isto não é sobre isso.

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