Opinião

Os trumpistas do Capitólio ao pé do PS são uns meninos

A propósito dos concursos para a Administração Pública, o sociólogo Pedro Gomes Sanches afirma que os socialistas portugueses são muito mais inteligentes que os trumpistas norte-americanos, “porque são mais hábeis e eficazes no assalto às instituições”

Dos últimos 164 concursos que a Comissão de Recrutamento e Selecção para a Administração Pública (CReSAP) conduziu, o PS "manobrou" a seu favor pelo menos 136; 83% do total. Já aqui tinha tratado deste tema, mas agora, com os dados actualizados, a coisa piorou. Piorou para o país. Para a clientela do Largo do Rato, claro, melhorou. Mas, e novidades?

Os socialistas portugueses são muito mais inteligentes que os trumpistas norte-americanos. Esperem, não façam já a festa, não é elogio. São mais inteligentes, porque são mais hábeis e eficazes no assalto às instituições. Ao passo que os trumpistas, sem sucesso, fazem um alarde carnavalesco no assalto ao Capitólio, os socialistas, com eficácia, assaltam a Administração Pública, atropelam a separação de poderes, comprometem a independência das instituições e, de caminho, metem no bolso o principal partido da oposição, tudo de forma excepcional, de mansinho e na surdina das comissões e corredores. O povo, esse, aplaude e retribui. Elites indigentes e povos subservientes nunca deram bom resultado.

Vamos a factos. A CReSAP, criada por Passos Coelho e para a qual nomeou, para a presidir, um socialista indicado pelo então secretário-geral do PS, pretendia ser uma comissão independente de avaliação de mérito para o recrutamento e selecção de dirigentes para altos cargos públicos. Hoje a CReSAP custa mais de meio milhão de euros por ano (cerca de 670.000 euros) e a sua independência e poder é uma anedota de piada discutível.

Quando dizia que o PS assalta de forma excepcional o poder, não era loa. O que queria dizer é que o faz usando a excepção no lugar da regra. Porque para o PS, a célebre afirmação de aos amigos tudo, aos outros o rigor da lei, sempre foi um mantra inegociável.

Um pouco de juridiquês: há duas formas de ocupar um cargo dirigente na Administração Pública, por concurso e por substituição. A substituição, para altos cargos, é feita pelo governante, livremente, sem escrutínio, dispensando o procedimento concursal. Este tipo de designação é excepção e não regra. Repito: o regime de substituição é excepção e não regra. E essa excepção, dúvidas haja, é neste caso reforçada pela natureza urgente dos procedimentos concursais conduzidos pela CReSAP, que dispensam audiência de interessados para que, precisamente obviando a urgência da ocupação do lugar, a celeridade se sobreponha.

Ora, dos últimos 164 concursos disponíveis e concluídos no site da CReSAP, 136 dos escolhidos foram nomeados antes, em regime de substituição - ou transitaram directamente de gabinetes governamentais -, livremente, pelos governantes responsáveis pelos serviços. Perante este resultado, ou a CReSAP é uma comissão nada independente, apenas ao serviço - bastante oneroso - de legitimação do quero, posso e mando socialista ou todos os governantes são, em matéria de previsão e clarividência, muito melhores que o alucinado Xamã da QAnon do assalto ao Capitólio. Porque nunca se enganam e raramente têm dúvidas. E, nesse caso, talvez valesse a pena acabar com esta hipocrisia. É porque, entre outras razões, para legitimar a escolha destes 136 ungidos, mobilizaram-se pelo menos mais 272 “idiotas úteis” que ficaram em short-lists (que contêm sempre três nomes), que perderam tempo na formalização da candidatura, que é morosa, na realização de testes, e na presença em entrevista, alimentaram expectativas, e que na maior parte dos casos nem sequer foram contactados pelas tutelas para os conhecer e avaliar a sua adequação ao lugar.

Há três reflexões que estes dados indesmentíveis merecem suscitar: a dependência empobrece, a motivação dos trabalhadores da Administração Pública fenece, e a democracia perece.

A dependência empobrece, porque países onde as lógicas clientelares imperam são países onde sobra pouco para o mérito e para a excelência. Nestes casos, com sistemas de avaliação e recompensa condicionados à partida e inconsequentes à chegada, e onde qualquer expectativa de ascensão hierárquica é limitada pela falta de “amiguismos” ou filiação partidária, não há motivação que não feneça. O custo da excelência, politicamente anunciada como desígnio, é imensamente maior que qualquer perspectiva de recompensa. Isto e organizações de trabalho do século passado, estruturas hiper hierarquizadas e processos mega burocratizados são os ingredientes para um sector estatal que, querendo-se forte e ágil, se limita a ser gordo e lento.

Não há democracia sem um Estado forte, respeitado, competente e onde as instituições independentes cumpram as suas funções. Ao pé desta erosão da salubridade democrática e do estímulo do mérito, que o PS insiste em impor-nos, os trumpistas do Capitólio são uns meninos.

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