- A: Estás? Consegues ouvir-nos?
- B: Faz um sinal se estás a ouvir-nos.
- A: A Ana está à espera para entrar. Vou admitir.
- C: Olá, não sei se me estão a ouvir. Não consigo ouvir ninguém. Esperem, vou sair e voltar a entrar.
- B: Estás sem som. Liga o microfone. Em baixo à esquerda. Isso.
- A: E agora, estamos todos?
- D: Peço desculpa, estou com uma conexão muito fraca e vou ter que desligar a câmara e acompanhar no áudio.
Começo por dizer que esta última frase pode salvar vidas. Não será no Expresso online que farei a apresentação do mundo do Zoom, Teams ou o das chamadas em grupo por WhatsApp. Saberão. De início parecia que aquilo iria facilitar muito porque, para além da razão óbvia, também havia a de limitar o tempo de cada reunião. No caso das reuniões por Zoom, o pacote gratuito é quarenta minutos e estes minutos acabaram por marcar a pauta. Dava-se também o caso de não passar pela cabeça de ninguém ir para ali comentar se já tinha bebido café ou se costumava beber com açúcar. Ia-se direto ao assunto. Chegava-se com rapidez a conclusões. Zero perdas de tempo em deslocações ou conversa de ocasião. O balanço ia em positivo.
Um detalhe nestas reuniões é que estamos sempre a ver a nossa própria cara. É-nos oferecida a oportunidade de visualizar a nossa imagem, tal qual a veem os restantes participantes da reunião. Os narcísicos têm aqui uma boa oportunidade de aprofundar um pouco mais o interesse na sua pessoa, desta vez também no exercício da expressão e na observação do processo fisionómico ou de tiques. Os que não eram narcísicos podem converter-se.
Vamos lá ver. Não é suposto termos a possibilidade de ver a nossa cara quando o foco da atenção deveria estar na dos outros participantes. E mesmo existindo a possibilidade de desligar a visualização da nossa própria imagem poucos o fazem. Mais, poucos o sabem. E é quase irresistível confirmar se se “está bem”. Esta auto-observação corta a dialéctica entre os participantes e pode levar algum deles a entrar em circuito fechado levando ao curto-circuito da comunicação em grupo. Por alguma razão os espelhos não marcavam presença nas salas de reunião. Agora reunimos enquanto nos vemos em espelho inverso, da exata maneira que os restantes nos veem, e com pessoas que estão a fazer o mesmo. É certo que já se terão deparado com alguém que fixa recorrentemente um ponto do ecrã. Pode bem ser a respectiva cara. Duvidem especialmente dos que comparecem com óptimo aspecto e tenham em atenção os que estão na situação inversa.
Este confronto permanente com um auto-retrato em movimento, sem edição, efeitos ou filtros e normalmente com má iluminação, é uma novidade da pandemia e já sabemos que as novidades que ela traz não costumam ser boas. Observa-se durante horas a própria cara e todos os seus defeitos. As reuniões Zoom levaram ao aumento do Transtorno Dismórfico Corporal – caracterizado como uma intensa preocupação de alguém relativamente a um defeito físico imaginário ou de pouca importância levando a níveis de sofrimento clinicamente significativos – e ao aumento da procura de tratamentos estéticos, sobretudo faciais. Não fomos de facto feitos para isto.
Aqui poderia pensar-se que tamanha atenção à própria imagem implicaria sempre uma desatenção relativamente ao que se está a passar na reunião. Sucede que pode não ser o caso e sim o desta preocupação se somar às restantes e constituir mais um nível de dificuldade para quem está em teletrabalho. As pessoas são muito boas a impor a sua própria exploração. O Luiz Pacheco falava disso mesmo no livro “Exercício de Estilo”: de escravos por conta de outrem e de escravos por conta própria. A dedicação de quem está em casa a trabalhar pode variar muito. Há sempre uma maneira de fazer ronha, há sempre uma maneira de esticar a corda até aos limites do cansaço e também há o caminho do meio, o da virtude. Neste conheço pouca gente.
Partindo do princípio que as reuniões Zoom podem optimizar o tempo, deve fazer-se a pergunta: tempo para quê? Para trabalhar mais fazendo por exemplo mais Zooms? Tempo para passar mais tempo nas redes sociais? Tempo para ler mais informação online? É que tanto tempo em casa não deixa antever que esse extra seja dedicado à família, nunca se esteve tanto tempo em família, ou em passeios ao ar livre, que são uma exceção à obrigação de permanência em casa. Cada um saberá. Digo que o lazer nas redes sociais pode também ser cansativo e devolver menos do que aquilo que se entrega.
Bom, também que se trata de trabalho gratuito para empresas que não estão a precisar dos programas de apoio do governo e cujos administradores podem nem saber bem onde fica Portugal. Hoje não é sobre isso. Somos produtores cibernautas do asfalto e corremos por gosto. Um dia resolve-se.
Para já, e independentemente da ideologia de cada um ou até da falta dela, grande parte das pessoas que está em teletrabalho recria, novamente em circuito fechado, o mercado liberal. A autoexploração é a reprodução dessa lógica. Afinal, também nisto, é possível fazer tudo sozinho. Perseguir o sonho do sucesso liberal a partir de casa, ficar extenuado em prol da carreira. E tudo bem. É mesmo verdade que é possível fazer quase tudo em frente a um ecrã e quase tudo sozinho. Há aqui o problema de não ser satisfatório. Para já, e até ver, somos animais que carecem uns dos outros e de contacto físico. Na mesma lógica o cansaço que resulta do trabalho em prol da comunidade ou de uma causa é mais compensador do que aquele que resulta de mais um dia a tentar fazer vingar uma carreira. Não comparar o cansaço – e tenho-o visto nos meus ecrãs – de um profissional de saúde, com este.
O individualismo assim é sobretudo um problema mais do que uma forma de estar na vida. O filósofo Byung-Chul Han diz que a falta de contacto físico ou o facto de se passar o dia de pijama extenuam. Faz bastante sentido. Precisamos do outro, da sua presença física e da sua proximidade. Precisamos também que os nossos objectivos integrem o bem estar de outros. Não é bondade nem ideologia. É um facto. A pessoa mais entregue ao exercício de uma vida egoísta e autossuficiente travaria se soubesse que os outros tinham desaparecido. Se soubesse que todos os participantes nas reuniões Zoom eram hologramas. A existência dos outros é uma condição para a manutenção do projecto de vida mais autocentrado que se possa conceber.
O próprio corpo tem as suas limitações naquilo que consegue fazer sem outro corpo. Vou falar-vos de cócegas. É impossível que alguém as consiga fazer a si mesmo. Falo das cócegas que fazem alguns rir até ao colapso. Não é um processo agradável: uma pessoa está a rir mas em sofrimento. A razão pela qual, nisto, não conseguimos enganar o cérebro é muito animal. As cócegas são o que resta de um mecanismo de alerta de que algum perigo passeava no nosso corpo. E quando tentamos provocar essa reação em nós mesmos o cérebro não interpreta os estímulos como sinal de perigo. Resultado: zero reação. Ninguém consegue arrancar uma gargalhada de si próprio desta forma.
É quase uma exceção.
Conseguimos ir muito longe sozinhos sobretudo os que tiverem essa determinação. A falta de satisfação e o vazio tornam-se sistémicos e claro que é possível viver assim, ainda mais quando existe, como agora, um objectivo aparentemente maior: a nossa própria sobrevivência.
Voltemos ao novo quotidiano.
A questão é se o balanço das reuniões por Zoom, das aulas online, das horas passadas nas redes sociais ou mesmo a estudar ou a escrever, é de facto positivo. A resposta não será fácil e não pretendo dá-la: é um facto que sem estes meios e plataformas o impacto económico da pandemia teria sido maior e igualmente maior teria sido o isolamento colectivo e o individual. A televisão não faz as vezes de um ecrã que interage. Para o bem e para o mal. Mas não se deve ignorar o dilema. Que pessoas seremos daqui a meia dúzia de anos se continuarmos a passar a maior parte do tempo em que estamos acordados a olhar para ecrãs e a esperar deles quase tudo o que nos faz falta: sustento, informação, lazer, amizades e eventualmente amor?
Aqui recordo-vos o fime “Her” de Spike Jonze. A história de “Theodore Twombly”, Joaquin Phoenix, um homem solitário e deprimido que vive sozinho depois de um divórcio mal resolvido. A sua vida muda quando compra um novo sistema operativo para o seu computador: uma inteligência artificial que pensa, que tem crises de identidade e sentimentos. Uma companhia perfeita que cuidava de “Theodore”, da sua agenda e que chegava a fazer escolhas por ele. A voz do sistema chamava-se “Samantha”, Scarlett Johansson, e para além de aceder a toda a informação disponível na internet, ela conhecia o protagonista profundamente. Conseguia assim antecipar as suas necessidades e assumir a figura de alma gémea. Uma mistura que resultou no que era inevitável: “Theodore” apaixonou-se por “Samantha”. Eles começam um relacionamento que envolvia ciúmes, mágoas, discussões e sexo. Uma relação.
A coisa não acaba bem como é aliás costume nas relações. Aqui havia razões que agudizam algumas que, tipicamente, fazem as relações não correr bem. “Samantha” não era real. Certo. Mas quantas vezes as relações assentam numa idealização que um faz do outro tornando-o irreal? Por outro lado “Samantha” não arrastava consigo aquilo que as pessoas normalmente arrastam: problemas, famílias problemáticas, dívidas, doenças crónicas, um passado. Quantas pessoas preferem assim? Entrar num relacionamento onde o outro parece feito para si e a si se dedica e com bastante competência sem exigir assim tanto em troca?
Esta pandemia saiu muito cara. Perdeu-se, eventualmente para sempre, a ingenuidade de um modo de vida que assentava na ausência de ponderação da possibilidade da nossa finitude – ou pior; da dos mais velhos e frágeis – a qualquer momento. Seremos para sempre pessoas que sabem que, a propósito de um incidente que até pode ser no outro lado do mundo, podemos ter a vida em sociedade e a pessoal ameaçadas. Nunca perderemos essa memória. Temos uma maioridade nova. Mas esta pandemia foi, ainda é, também uma boa escola na modalidade curso intensivo.
É muito cedo para balanços. Tudo o que se disser agora sobre as consequências destas circunstâncias na vida colectiva e nas vidas individuais corre um risco acrescido de não fazer sentido. Corajoso mas falível. É esperar para ver.
Voltemos à reunião, está quase a acabar.
- A: O tempo está mesmo a chegar ao fim. Gostava muito de ouvir o “D” sobre este último aspecto. “D”?
- D: (silêncio, continua sem câmara, também com o microfone desligado, mas está na sala)
- B: “D”, consegues ouvir-nos?
- C: Isto assim é muito cansativo.
- B: Posso criar um novo link. “D”, estás aí?
- C: Vou mandar-lhe uma mensagem por Whatsapp. Estou a vê-lo online.