Opinião

Meghan Markle, monarquias e repúblicas

Caro leitor, começo por descansá-lo. A crónica de hoje foca um episódio mundano, mas este serve sobretudo de introdução à parte relevante. Aviso feito, avancemos então para o substancial.

Há poucos dias, Meghan Markle deu uma entrevista a Oprah Winfrey, a rainha dos talk shows norte americanos, que serviu antes de mais para se queixar da família do marido. Á partida, a cena tinha todos os ingredientes para comover a opinião pública: a entrevistada é afro americana e plebeia, e apresentou-se como vítima de uma família insensível e disfuncional, que personifica uma instituição tida por anacrónica. Com ar compungido e o apoio do marido, a atriz Meghan Markle representou perante as câmaras o papel de princesa Diana do século XXI. Tal como a sogra, também ela terá sofrido o bullying dos Windsor e da imprensa britânica. Não haverá melhor forma de conseguir empatia com os espectadores do que insinuar semelhanças sofredoras com um ícone de dimensão global.

Não faço ideia se o relato de Meghan é verdadeiro ou não, nem de que lado está a razão neste melodrama. Só ouvimos uma das partes, pois a Casa Real britânica não tem por hábito fazer comentários públicos sobre questões privadas. Mas, como contraponto à condenação prévia dos Windsor, sublinho que Meghan Markle também é acusada por familiares próximos - o pai e a meia irmã - de ser demasiado ambiciosa e pouco dada a escrúpulos moralistas; que a entrevista gerou milhões de dólares; e que as acusações de racismo que fez foram genéricas e não dirigidas a alguém em concreto. O que quer isto dizer? Que, tal como os Windsor, Meghan Markle também foi acusada de condutas questionáveis, e que todos gozam da presunção de inocência até prova em contrário.

Meghan Markle e Henry Windsor têm todo o direito de querer capitalizar a sua notoriedade e de viver nos Estados Unidos como celebridades. Já levantar suspeitas sem as concretizar é algo de eticamente reprovável. Se Meghan Markle sentiu racismo, que identificasse o autor. Evitava assim lançar uma suspeita genérica sobre toda uma família, de que só recentemente faz parte.

É certo que a família real britânica teve e tem várias ovelhas negras, do frívolo Eduardo VIII (duque de Windsor depois de abdicar do trono), ao provavelmente perverso príncipe André, duque de York. Mas também tem bons exemplos de dedicação à causa pública, como o da rainha Isabel II; de seus pais, o rei Jorge VI e a rainha Isabel (a rainha mãe); ou daqueles que representam o futuro da instituição, o incompreendido príncipe de Gales, e os populares duques de Cambridge. Por acaso, ou talvez não, os bons exemplos vêm precisamente de quem ocupa o trono e dos seus herdeiros próximos.

A entrevista de Meghan Markle permitiu também voltar a questionar a utilidade da instituição monárquica na época contemporânea. Do ponto de vista puramente racional, não faz sentido que alguém seja Chefe do Estado por via hereditária e de forma vitalícia. Acontece que, por vezes, a prática troca as voltas à razão. Como explicar que sociedades tolerantes, que respeitam as liberdades, promovem a inclusão e a igualdade de oportunidades, continuem a ser monarquias? Alguém duvida que a Dinamarca, a Suécia, a Noruega, a Holanda e o Japão, ou o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia – estes últimos que têm a rainha Isabel II como Chefe do Estado - são dos países mais evoluídos do mundo?

Monarquia e república são formas distintas de enquadrar a chefia do Estado. Na prática, uma não resulta melhor que a outra, e a sua maior ou menor adequação a cada país depende da conjugação de múltiplos fatores. Como princípio, creio que todas as monarquias de base democrática devem ser parlamentares, com o Chefe do Estado a exercer sobretudo um papel simbólico, de união e referência, e uma “magistratura de influência” discreta e independente. Já as repúblicas são mais elásticas neste capítulo e permitem outras opções: podem ser

parlamentares, com o Chefe do Estado a ser eleito pelo parlamento; semi presidenciais ou presidenciais, nestes casos com o Chefe do Estado a ser eleito diretamente, o que legitima os seus poderes reforçados e a sua independência face ao legislativo. Por outro lado, da eleição do Chefe do Estado pelo parlamento não costuma resultar uma relação particularmente próxima com os cidadãos. O que liga o Chefe de Estado aos cidadãos é a sua eleição direta ou, então, o seu simbolismo hereditário, monárquico portanto, como elemento de ligação entre o passado e o presente.

A evolução histórica e o contexto politico e social justificam pois a preferência de alguns países por um Chefe do Estado hereditário. As motivações para esta opção podem ser várias, desde questões de unidade nacional, até à forma como as diferentes sociedades lidam com as suas referências simbólicas. A Holanda é um caso interessante. Este Estado, a que erradamente chamamos “Holanda”, foi formado por um conjunto de “províncias unidas”. Nos séculos XVII e XVIII, as províncias unidas dos Países Baixos constituíram-se em República mas, a partir do século XIX, optaram pelo regime monárquico.

Hoje, a monarquia parlamentar tem o apoio de uma larga maioria de cidadãos holandeses. Como povo pragmático, é natural que os holandeses reconheçam alguma utilidade a esta forma de regime, provavelmente como fator de união das províncias históricas que compõem o seu Estado. Esta é também uma das justificações para a existência de monarquias na Bélgica, no Reino Unido, ou em Espanha. Dificilmente um valão aceitaria um flamengo como presidente da República, ou um escocês aceitaria um presidente da República inglês.

Isto não quer dizer que uma república seja ineficaz como fator de unidade. Significa apenas que a generalidade dos cidadãos dos estados acima referidos consideram que, no seu contexto, a monarquia é capaz de o fazer melhor. Noutras paragens, no Japão por exemplo, a monarquia representa sobretudo um elo de ligação histórica e espiritual de uma comunidade que valoriza a intemporalidade. Os motivos são pois distintos, mas certo é que as democracias só mantêm uma chefia do estado monárquica enquanto a larga maioria dos seus cidadãos o quiser. Na origem, república é o governo da “coisa pública” e, em democracia, este não é afetado por coexistir com uma chefia do estado de base monárquica.

Também, e ao contrário do que aconteceu no passado, a maioria das monarquias de base democrática só concedem privilégios a um pequeno núcleo familiar, em média não mais de umas 10 pessoas, e não a toda uma classe ou grupo. É um número com impacto nulo na desejável igualdade de oportunidades que qualquer Estado deve promover. Sociedades como a japonesa ou a dinamarquesa, aceitam pois que um conjunto residual de pessoas tenha uma condição distinta das demais – situação que confere privilégios mas também obrigações – isto por acharem que tal traz mais benefícios que malefícios.

Em conclusão, não existe apenas um modelo de monarquia, nem um modelo de república. Existem sim monarquias e repúblicas. A monarquia inglesa, cénica e distante, tem pouco a ver com a holandesa, frugal e próxima. A monarquia sueca nada tem a ver com a marroquina ou com a tailandesa, que são de prática quase absoluta. Assim como a república Suíça nada tem em comum com as despóticas repúblicas da Guiné Equatorial ou da Coreia do Norte, estas duas presididas por dinastias de sádicos. E tal como as realidades presentes são diferentes, também nenhuma destas pode ser comparada com o passado. A monarquia norueguesa contemporânea nada tem a ver com a monarquia francesa medieval, assim como a república portuguesa contemporânea nada tem a ver com a república florentina da época do renascimento.

Os sistemas políticos dos estados são realidades complexas, compostas por múltiplas variáveis. Em teoria, a monarquia será anacrónica e antidemocrática mas, na prática, é uma variável que em vários estados desenvolvidos, livres e tolerantes, já provou ser benéfica. Monarquia e república não são pois um resultado, mas sim parte da equação que estrutura e equilibra os sistemas políticos dos estados. E, ao contrário do que afirma o preconceito, a variável

monarquia também pode produzir bons resultados, tal como a realidade tem vindo a demonstrar. Mesmo apesar das entrevistas de Meghan Markle

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