Opinião

Sorria! Está a ser filmado… mesmo que não queira

A pretexto do combate à pandemia de covid-19 medem-nos os passos. Até os aprisionam. Espiam-nos. Até nos gravam. Instrumentalizam-nos. Como se fossemos apenas mais um produto comercial, posto à venda pelo preço mais alto. Miguel Prata Roque, professor de Direito e ex-Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, escreve sobre “a banalização da exposição permanente"

Com surpreendentes doses de conformismo (de todos nós), algumas consultoras especializadas em “Data Science” já alardeiam – triunfantes – que sabem quantos portugueses saíram à rua, quanto tempo lá ficaram, onde foram, se foram fazer compras ou se foram passear à beira-mar. Sabem com quem falamos; e pior, sobre o que falamos. Sabem onde estamos; e pior, a fazer o quê. Escutam o que dizemos; e pior, partilham apenas as opiniões de quem connosco concorda. Adormecem ao nosso lado, ocultas nos telemóveis e tantos outros equipamentos tecnológicos; e pior, gravam até os nossos mais íntimos sonhos e pesadelos.

O processo de normalização está em curso. A banalização da exposição permanente. A pretexto do combate à pandemia de Covid-19 medem-nos os passos. Até os aprisionam. Espiam-nos. Até nos gravam. Instrumentalizam-nos. Como se fossemos apenas mais um produto comercial, posto à venda, pelo preço mais alto.

Quem não se deparou já com o súbito aparecimento de um anúncio a um ar condicionado, nas suas redes sociais ou equipamentos eletrónicos, logo a seguir a ter conversado com amigos e familiares sobre o calor insuportável que enfrentava em sua casa? Sempre a pretexto da saúde pública, já houve até quem ousasse querer monitorizar-nos, através de aplicações eletrónicas. Claro está (na sua retórica sanitária), “apenas” para melhor combater a disseminação do vírus. O que vale é que é sempre “para nosso bem”

Atiçados pela passividade generalizada e sedentos por nos espoliar das últimas réstias de liberdade individual, há agora quem queira aproveitar a quietude do confinamento para distribuir por Lisboa 216 (!) câmaras de videovigilância pública. A retórica pública? Combater essa (pretensa) perigosa criminalidade que todos enfrentamos no nosso dia-a-dia. O objetivo real? Habituar as pessoas, passo ante passo, a abdicarem do seu espaço de liberdade pessoal. Conduzi-las a aceitar a (a)normalidade de não poderem ser livres, sempre que saem de portas e se encontram no espaço público.

Vamos, então, aos factos.

Segundo o “Global Peace Index”, Portugal é o país mais seguro da União Europeia e o terceiro país mais seguro do mundo.

De acordo com os sucessivos Relatórios Anuais de Segurança Interna (RASI´s), a criminalidade geral tem vindo a diminuir, todos os anos (até 2019), e a criminalidade violenta reduziu-se em 42,5%, em apenas uma década (entre 2008 e 2019).

Durante a pandemia de Covid-19 – e a fazer fé em dados provisórios –, a criminalidade geral desceu 10% e a criminalidade violenta 11,4%.

Que razões há, então, para esta voragem “voyeurista”, por parte da Câmara Municipal de Lisboa?!?...

Como é evidente, a banalização da decretação de estados de emergência e a normalização da excessiva restrição das liberdades individuais, com a suspensão consecutiva – e a perder de vista – da mais elementar liberdade de agir (e de pensar) tornam tudo isto possível. Se há algo que resultou da crise foi a ditadura tecnológica e o reforço das “Big Tech”. Crise? Só para alguns. Enquanto muitos são forçados a ficar de portas fechadas ou a deixar os seus trabalhadores sem tarefas, outros prosperam. E muito. Os que se especializaram no comércio eletrónico (e à distância) – entre os quais, “Amazon”, “Alibaba” e “Wish”os grandes transportadores mundiais de mercadorias que se adaptaram tecnologicamente – por exemplo, “Fedex”, “DHL”, “DPD Group” e “Chronopost” –, os que prosperam através do comércio de luxo – por todos, a portuguesíssima “Farfetch”, cujas vendas aumentaram 74%, em ano de pandemia – e, claro, os gigantes tecnológicos que monopolizam os “softwares” informáticos, as redes sociais e os motores de pesquisa de acesso livre e gratuito (?) – como a “Google”, o “Facebook”, a “Microsoft” e a “Apple”.

Enquanto isso, os poderes públicos – neles incluídos os governos nacionais e, até (!), as instituições europeias e internacionais – permanecem imóveis. Demitem-se da sua função dirigente e, mesmo, da sua função regulatória e supervisora. Faz algum sentido que as empresas de sondagens sejam obrigadas (e bem) a depositar junto da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) a respetiva ficha técnica e a garantir a anuência das pessoas sondadas, enquanto as empresas tecnológicas que compram e vendem os nossos dados pessoais – incluindo a nossa geolocalização – estejam completamente dispensadas de qualquer mecanismo que as controle e limite? Faz algum sentido que o Estado e as empresas tradicionais tenham sido espartilhadas por um kafkiano Regulamento Geral de Proteção dos Dados que as enche de (pseudo) rigor burocrático e que, em simultâneo, as “Big Tech” recolham livremente quantos passos damos num dia ou a nossa própria batida cardíaca, só porque utilizamos um telemóvel de última geração? E mais: alguém compreende que o Código Penal puna os crimes de devassa da intimidade privada e que a Constituição proíba a censura para que, depois, qualquer operador de telecomunicações ou qualquer rede social esteja permanentemente a escutar e a gravar tudo o que dizemos e fazemos, em privado, incluindo aquilo que jamais diríamos no espaço público?

Nenhuma polícia política, nenhum censor, nenhuma ditadura, alguma vez, ousou ir tão longe.

E os poderes públicos assobiam para o lado. Fingem que não sabem. Fingem que não veem.

Pior. Colaboram ativamente neste processo de mercantilização da nossa individualidade, do nosso pensamento livre e da nossa intimidade privada. Já não é raro ouvir (e ver) autarcas a aceitar viagens e hospedagem pagas em locais turísticos, para serem alvos de lavagem cerebral pelos que vendem o negócio das (ditas) “Smart Cities”. Esquecem (ou escondem…), porém, os seus riscos. E, agora, chegam ao ponto de acharem normal filmar-nos, enquanto namoramos em público, quando vimos passear o cão à rua, de pijama, ou quando fazemos piadas sobre políticos, patrões ou familiares.

Não, não me sinto inseguro.

Não, não quero que a nossa vida seja permanentemente monitorizada, espiolhada, esmiuçada. Enfim, esbulhada. Como se de meros ratos de laboratório nos tratássemos. Não estamos – e devemos lutar, todos, para que nunca estejamos – no centro de um filme de ficção científica, em que o respeito pelos padrões sociais maioritários é garantido através da repressão tecnológica e da constante espionagem e delação de cada um de nós.

Não, não me sinto seguro. Não me sinto seguro enquanto crescer este totalitarismo estatal e este puro fetichismo tecnológico que tolda a visão de quem (acha) que nos governa. Há que denunciar o erguer das ditaduras digitais, como corajosamente já fez Yuval Noah Harari.

Há limites para tudo.

Até para o uso da tecnologia.

Um desses limites é, precisamente, o direito ao seu não uso. O direito a desligar do ambiente tecnológico, sempre que o indivíduo disso precise. Ou seja, o já velhinho aforismo inglês do “right to be alone” (direito a estar sozinho) ou do “right not to be disturbed” (direito a não ser perturbado), que constitui a essência dessa liberdade negativa pela qual Isaiah Berlin tanto lutou.

É, precisamente, em tempos de provação e de medo que a nossa coragem coletiva se revela. É preciso reagir. É preciso não deixar que o (pretenso) combate à pandemia sirva de pretexto para eternizar medidas que nos despojam do mais humano que há em nós: a nossa individualidade.

Sorria!

Mas não deixe que a/o filmem.

Ou, pior. Que façam da sua vida um filme.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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